O invisível tornado visível com a Companhia Maior

Até segunda-feira, Sofia Dias e Vítor Roriz dirigem a Companhia Maior no CCB, em Lisboa, num espectáculo contemplativo, que puxa o público para dentro de um sonho.

Foto
Ensaios da peça "O Lugar do Canto Está Vazio" bruno simão

“Fechamos os olhos. Ficamos invisíveis.” Há silêncio à volta quando estas palavras se fazem escutar no palco do Pequeno Auditório do Centro Cultural de Belém, vindas da boca de um dos intérpretes da Companhia Maior. A invisibilidade de que nos falam é uma invisibilidade virada para fora, mas também para dentro, e é ela que move a peça O Lugar do Canto Está Vazio. Todos os anos, desde que Luísa Taveira arrancou com o projecto de uma companhia teatral sénior no CCB em 2010, é endereçado o convite a um artista ou a um colectivo para que crie um espectáculo de raiz para este elenco. Desta vez, a escolha recaiu sobre a dupla de coreógrafos e bailarinos Sofia Dias e Vítor Roriz, cuja obra dançada sempre se deixou invadir pela palavra em cena. O Lugar do Canto Está Vazio pode ser visto no CCB até segunda-feira, seguindo-se uma digressão nacional em 2020.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

“Fechamos os olhos. Ficamos invisíveis.” Há silêncio à volta quando estas palavras se fazem escutar no palco do Pequeno Auditório do Centro Cultural de Belém, vindas da boca de um dos intérpretes da Companhia Maior. A invisibilidade de que nos falam é uma invisibilidade virada para fora, mas também para dentro, e é ela que move a peça O Lugar do Canto Está Vazio. Todos os anos, desde que Luísa Taveira arrancou com o projecto de uma companhia teatral sénior no CCB em 2010, é endereçado o convite a um artista ou a um colectivo para que crie um espectáculo de raiz para este elenco. Desta vez, a escolha recaiu sobre a dupla de coreógrafos e bailarinos Sofia Dias e Vítor Roriz, cuja obra dançada sempre se deixou invadir pela palavra em cena. O Lugar do Canto Está Vazio pode ser visto no CCB até segunda-feira, seguindo-se uma digressão nacional em 2020.

A invisibilidade de que se fala em palco remete para uma das premissas que Sofia Dias e Vítor Roriz levaram consigo para o primeiro encontro com a Companhia Maior. “Uma das ideias que queríamos trabalhar estava relacionada com uma analogia entre o sono e a morte”, diz a coreógrafa ao PÚBLICO. “No sentido em que tanto o sono como a morte são uma interrupção de um estado de vigília. A vida continua e nós estamos ali em stand-by – voltamos ou não voltamos.” No espectáculo ouve-se mais tarde: “Sinto uma paz magnífica e terrível de que as coisas continuam na minha ausência”. Mas a ideia não se fica apenas por essa suspensão da vida que o palco também proporciona – interrompe-se a vida a que chamamos real e esta é, por momentos, substituída por algo entalado entre a verdade e a mentira, entre a ficção e a representação da realidade. Por isso, Vítor Roriz acrescenta que este sono ou esta morte não apontam apenas para a “transitoriedade da vida”, mas também para “a diluição do eu, da identidade”.

Fotogaleria
bruno simão

Estas pistas são fundamentais para lançar a Companhia Maior num modelo de espectáculo que não lhe tem sido habitual. Habituados a trabalhar com criadores ligados sobretudo ao teatro, os textos inspirados na sua biografia ou puramente ficcionais têm-lhes proposto partir sobretudo de narrativas – por menos convencionais que possam sê-lo. Desta vez, no entanto, a transição para um estado de repouso proposto pela dupla atira o espectáculo para uma zona em que, descreve Sofia Dias, “as formas começam a deformar-se, as palavras começam a alongar-se e as coisas começam a perder a textura real que têm”. O Lugar do Canto Está Vazio torna-se, então, uma peça imersiva, contemplativa, lenta, quase hipnótica, num desejo de que o público, levados pelos intérpretes, aceda a uma qualquer zona de sonho e de “perda de controlo ou de estado alterado de consciência”.

Estamos ainda a cair para dentro deste sonho, após movimentos e reflexões sobre o início dos espectáculos e o foco da atenção do público, quando Carlos Nery se chega à frente e afirma, assertivo, “Este sou eu”. E olhá-lo, seguir-lhe os movimentos, observá-lo dos pés à cabeça é quanto basta para sabermos quem é. Sofia Dias e Vítor Roriz não quiseram mergulhar nas histórias de vida do elenco. Apresentá-las em palco, dizem, seria “redundante”. Porque pensámos no corpo como o museu de uma experiência humana, que contém esse arquivo [de memórias e vivências]”, explicam. “O corpo já é uma biografia em si. Não podemos escapar a isso, já contemos em nós a nossa própria história.”

O desfasamento

Sendo um desafio para a Companhia Maior lidar com a linguagem de cada criador com que o grupo trabalha anualmente, não é um desafio menor para quem chega com as suas ideias confrontar-se com uma companhia não-profissional que tem também as suas idiossincrasias e as suas fragilidades. Assim, os pontos de partida com que Sofia Dias e Vítor Roriz iniciaram os ensaios serviram apenas para lançar os primeiros alicerces. Vítor parafraseia Susan Sontag quando a autora dizia que “tal como não se corre antes do tiro de partida, também não se começa a escrever um livro na cabeça, mas à medida que se escreve”. Foi também isso que rapidamente perceberam ao desenvolverem este trabalho. “As variações aqui são muito fora do nosso controlo, porque não são os nossos corpos – e é essa a nossa matéria habitualmente”, comenta o coreógrafo. “São outros corpos, com outras linguagens e há um lapso geracional que se reflecte noutros modos de dizer texto e estar em cena, são outros códigos.”

Daí que os dois se tenham sentido atraídos por este desfasamento e de esse ser também um dos elementos preponderantes na preparação do espectáculo. Segundo contam ao PÚBLICO, aos poucos perderam “totalmente a distância em relação ao elenco” e tornou-se assim mais fácil aceitarem registos mais teatrais que lhes pareciam, de início matéria menos estimulante. “Em vez de contrariarmos isso”, dizem, “tentámos integrar.” O Lugar do Canto Está Vazio desenrola-se, assim, sempre num equilíbrio entre criadores e intérpretes, enquanto aquilo que ambos podem oferecer para tentarem coabitar e não se destruírem. “É importante a nossa linguagem não comer a singularidade deles, tal como as ferramentas deles não comerem a nossa linguagem.”

Fotogaleria
bruno simão

Mais importante talvez do que a proposta artística é, admitem, o facto de “estas pessoas se juntarem, com estas idades, para fazerem algo que as transcende e que está muito para além daquilo que, infelizmente, seria expectável – porque enquanto sociedade costumamos pensar que são pessoas que saem do modo produtivo e vão para o lugar do canto.” Esse lugar, aqui, está vazio. A invisibilidade temática explorada em palco é, afinal, um statement de visibilidade.