A rebelião das massas
Haverá um denominador comum a todos estes protestos? Sim. A frustração, o ressentimento e a revolta contra o sistema estabelecido.
Não, não estou a falar do clássico de Ortega y Gasset. Estou a falar do protesto de massas que atravessa, hoje, o mundo inteiro. Tudo começou há um ano, em Paris, com o movimento dos coletes amarelos. De então para cá, a revolta popular não parou mais. Nos últimos nove meses, o protesto tomou conta da rua e a rua tomou conta do mundo. São gigantescas manifestações de massas que saíram à rua nas mais diversas capitais e que se tornaram um actor central na política global.
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Não, não estou a falar do clássico de Ortega y Gasset. Estou a falar do protesto de massas que atravessa, hoje, o mundo inteiro. Tudo começou há um ano, em Paris, com o movimento dos coletes amarelos. De então para cá, a revolta popular não parou mais. Nos últimos nove meses, o protesto tomou conta da rua e a rua tomou conta do mundo. São gigantescas manifestações de massas que saíram à rua nas mais diversas capitais e que se tornaram um actor central na política global.
Em Hong Kong, o protesto contra uma lei da extradição transformou-se numa luta pela liberdade e pela democracia. Na Catalunha, o protesto contra a prisão dos líderes independentistas transforma-se na luta pela própria independência. No Chile, um protesto contra o aumento do preço dos bilhetes do metro transformou-se numa luta contra as desigualdades. No Líbano, um protesto contra um imposto sobre a utilização do WhatsApp transformou-se numa luta contra a corrupção. No Iraque, a demissão de um militar tido por combater a corrupção transformou-se numa luta contra a falência dos serviços públicos. No Irão, o protesto foi contra a subida do preço dos combustíveis, na Índia contra o preço das cebolas e na Arábia Saudita contra um imposto sobre o uso dos cachimbos de água nos restaurantes.
As causas próximas são várias e, muitas delas, secundárias. As causas profundas, pelo contrário, são sérias e quase sempre as mesmas: desigualdades económicas, ameaça às liberdades políticas, corrupção, separatismo. Mas haverá um denominador comum a todos estes protestos? Sim. A frustração, o ressentimento e a revolta contra o sistema estabelecido. A incerteza sobre o futuro e a luta pela dignidade de que os manifestantes se sentem excluídos. Excluídos, porque não se sentem representados pelas instituições tradicionais – partidos ou sindicatos – e excluídos porque sentem que os governos não respondam às suas necessidades, aos seus anseios e, sobretudo, aos seus receios. São pequenas coisas que se transformam em grandes causas.
Na mobilização das massas são os jovens os actores principais, estudantes universitários ou mesmo do secundário, a que se juntam os desempregados e depois a massa dos cidadãos que se identifica com o protesto. O instrumento principal da mobilização é o telemóvel e o veículo as redes sociais. A organização é horizontal e em rede, sem hierarquias nem lideranças visíveis. Os protestos tendem a radicalizar-se e a violência entra em cena. Do lado da repressão policial e também dos manifestantes. Os mortos contam-se já pelas centenas. E mesmo quando os governos cedem e os líderes caiem, os protestos continuam na rua.
Quer isto dizer que as coisas estão a mudar e os protestos estão a vencer? Não. O que um estudo sistemático sobre o protesto político realizado por Erica Chenoweth, da Universidade de Harvard, nos diz é precisamente o contrário. Nos últimos 20 anos, a taxa de sucesso dos protestos que reivindicavam a mudança política sistémica era de 70%, uma tendência que crescia sustentadamente desde a década de cinquenta. Desde 2000, porém, a tendência inverteu-se e, hoje, a taxa de sucesso destes movimentos é de apenas 30%. Isto é, a banalização do protesto limita a sua relevância e reduz a sua eficácia. Ao banalizar-se perde o seu poder transformador e torna-se o “novo normal”.
Mas o que é que explica essa queda da eficácia do protesto como instrumento de mudança política? Primeiro, a mudança do ambiente político internacional e a recente vaga de autocratização. Pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial, o número dos países que evoluem para a autocracia é maior dos que evoluem para a democracia. Segundo, a resposta cada vez mais sofisticada dos poderes, não só na repressão dos manifestantes, mas também no uso das novas tecnologias e redes sociais. O instrumento de mobilização passa a ser usado também como instrumento de desmobilização. E, finalmente, a própria duração e a radicalização do protesto. Pode a causa ser a mais nobre, pode o objectivo ser o mais justo, mas se o método for o da violência, o protesto tende a isolar-se, alienando o apoio da maioria da população. Ou seja, os meios podem comprometer os fins.
O protesto é um poderoso instrumento de mudança política. Mas o segredo do seu sucesso está na capacidade de atrair para a sua causa a maioria dos cidadãos. Isto é, de transformar a revolta das margens no interesse comum. É isso o que está em jogo, de Hong Kong a Barcelona, de Beirute a Santiago.