Confidências de uma bulímica

Desde que comecei a comer e a vomitar, passei também a fazer outras coisas de que não gostava e para as quais não tinha sido educada, como mentir, esconder e arranjar esquemas. A partir daí toda a minha vida mudou.

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Mag Rodrigues

Qual é a primeira coisa que ainda faço quando entro numa casa que não conheço? Vou à casa de banho ver se o autoclismo funciona. Durante bastante tempo, digamos que fui uma pessoa maior do que as outras. Por exemplo, era maior do que as minhas colegas de escola, e isto numa época em que as meninas eram mesmo pequenas e não estas matulonas de 11 anos que agora vemos por aí. Quando entrei na preparatória, os meus colegas baptizaram-me baleia assassina. Não posso dizer que fosse agradável ter de conviver diariamente com criaturas que me consideravam o maior e mais perigoso mamífero marítimo. É verdade que nunca fui uma criança fisicamente frágil; era corpulenta e chocava com o meio “queque” em que cresci, onde as miúdas pareciam bonecas de porcelana. Eu bem tentava integrar-me no meio das folhinhas e borrachinhas com cheiro, como as minhas colegas, mas não conseguia.

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Qual é a primeira coisa que ainda faço quando entro numa casa que não conheço? Vou à casa de banho ver se o autoclismo funciona. Durante bastante tempo, digamos que fui uma pessoa maior do que as outras. Por exemplo, era maior do que as minhas colegas de escola, e isto numa época em que as meninas eram mesmo pequenas e não estas matulonas de 11 anos que agora vemos por aí. Quando entrei na preparatória, os meus colegas baptizaram-me baleia assassina. Não posso dizer que fosse agradável ter de conviver diariamente com criaturas que me consideravam o maior e mais perigoso mamífero marítimo. É verdade que nunca fui uma criança fisicamente frágil; era corpulenta e chocava com o meio “queque” em que cresci, onde as miúdas pareciam bonecas de porcelana. Eu bem tentava integrar-me no meio das folhinhas e borrachinhas com cheiro, como as minhas colegas, mas não conseguia.

Uma noite, já estava eu no liceu, tive uma epifania ao ver uma série na televisão. A protagonista da série Models, depois de se empanturrar com hambúrgueres, batatas fritas e uma grande caixa de gelado, dirigiu-se na maior das calmas até à casa de banho, debruçou-se na retrete, enfiou a escova de dentes pela goela abaixo e, zás!, milhares de calorias ingeridas foram automaticamente jogadas fora. É claro que o último episódio da série tinha um final trágico e que a miúda, aparentemente tão engenhosa, acabava mal ou, para ser mais exacta, morta. Não seria justo dizer que a série espoletou a minha doença, o problema já estava dentro de mim. Se não fosse a protagonista da Models, tinha sido outro paradigma disforme a dar-me ideias. A verdade é que considerei um detalhe o facto de a rapariga morrer no final da série. Mas vim a constatar que o facto de a série acabar de forma trágica não era um pormenor, mas sim um “por maior”.

Desde que comecei a comer e a vomitar, passei também a fazer outras coisas de que não gostava e para as quais não tinha sido educada, como mentir, esconder e arranjar esquemas. A partir daí toda a minha vida mudou. Ir jantar a casa de alguém, por exemplo, tornou-se uma desgraça iminente. Há pessoas que vomitam para dentro de sacos de plástico ou para caixotes de lixo, mas eu não. Só o faço em retretes, sinto nojo de o fazer noutros locais. Sabem qual era o meu único receio em relação às sanitas? Que o vómito não fosse para baixo e ficasse por ali a boiar — seria apanhada. Daí a importância de verificar, em qualquer casa ou restaurante, o bom funcionamento do autoclismo e a eficiência da canalização.

Quero que se saiba que esta perturbação domina completamente a vida de quem a tem. Por exemplo, além de um sítio para vomitar à sorrelfa, tinha outras preocupações — o que comer depois de vomitar? Não podia ficar muito tempo sem nada no estômago. Cheguei a desmaiar algumas vezes e tinha sempre uma justificação. A minha mãe estava convencida de que eu tinha a tensão baixa e não estranhava os incidentes. A minha mente achava-se continuamente ocupada com esquemas e justificações. O que é que vou comer? Como é que me vou livrar da comida a seguir? Como é que me liberto disto sem que as pessoas percebam? A casa de banho está longe ou está perto? Será que alguém me vai apanhar a puxar o vómito?

Houve uma altura em que a pressão passou a ser muita no ambiente académico, com a família e o namorado da altura, e então percebi que não aguentava mais. Precisava de ajuda — confessei tudo à minha mãe e inaugurei um pacto de sinceridade num dilúvio recíproco de lágrimas.

Durante ano e meio fui seguida por um psiquiatra que me receitava uns medicamentos — eu vomitava-os. Afinal ainda não estava preparada para ser sincera. Quando acabei por entrar de maca no hospital — depois de não sei quantos anos desde o primeiro vómito forçado —, lembrei-me da protagonista da Models e tive medo. Verdadeiro terror. Senti que aquele podia ser o meu último episódio.