Boris, Hulk e o eclipse da Razão
Como olhar o mundo quando o líder de uma das mais importantes potências mundiais ancora a força da Inglaterra num herói da Marvel.
Olhar para o mundo e para nós próprios é um gesto cultural. Olhamos a partir de representações, de valores, transmitidos de geração em geração, consolidados ou criticados, transformados ou substituídos, em cada situação concreta. Como nos olhamos, como olhamos os outros, hoje?
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Olhar para o mundo e para nós próprios é um gesto cultural. Olhamos a partir de representações, de valores, transmitidos de geração em geração, consolidados ou criticados, transformados ou substituídos, em cada situação concreta. Como nos olhamos, como olhamos os outros, hoje?
O século XVIII reforçou, na Europa, uma tendência intelectual e política em ordem à autonomia do ser humano face a Deus e de afirmação da possibilidade de parâmetros universais para o entendimento, a partir da ideia de uma comum “natureza humana”. A confiança cartesiana num “pensamento único” – racionalista – era acompanhada pela aparente segurança dos dados obtidos através da observação e de um método experimental. Isaiah Berlin, no seu excelente texto sobre o Contra-Iluminismo, diz que, concomitante a esta tendência, existia outra, procurando demonstrar a impossibilidade do pensamento único, por em todas as dinâmicas humanas existirem juízos de valor, diferenças entre ideias e factos, sendo verificável a variação do pensamento e comportamento de sociedade em sociedade.
O século XIX assistiu a vários combates – no terreno da guerra territorial e no terreno das ideias. É o caso das tendências que pretendiam demonstrar o valor da diferença cultural, como defendia Franz Boas, e outras que reivindicavam fórmulas universais para a ação, nomeadamente, o Marxismo. Havia os que, como os românticos, celebravam o exercício subjetivo, e os que procuravam olhar a vida “tal como ela é”.
O século XX promoveu diversos movimentos, desde os que culminaram nas ditaduras nazis, comunistas e fascistas, aos que concretizaram democracias orientadas para o Estado Social ou outros, com tendências neoliberais e autoritárias. As artes renovaram-se, no paradoxo da sua capacidade de invenção e da predação pelo mercado. A ciência superou-se, em sucessivas revoluções tecnológicas. As religiões monoteístas evoluíram para novos continentes, por vezes em versões populistas ou extremistas. Os modelos de comunicação tenderam para a sua globalização.
Desembocámos no século XXI convencidos que a democracia era vitoriosa, enquanto sistema político, e que o mercado era o modelo económico que melhor servia a Humanidade. Passados 20 anos deste nosso século, nem a democracia nem o mercado se impuseram de forma inequívoca. Democracia e mercado correspondem, com a defesa do pluralismo e da livre concorrência, no respeito de um sistema público de justiça e de um estatuto de cidadania em liberdade, ao modelo político e económico que os países europeus ocidentais escolheram na segunda metade do século XX, procurando estendê-lo na geografia europeia e exportar para outros continentes, com mais ou menos sucesso.
Hoje, as democracias nacionais estão sujeitas às pressões do populismo e mais permeáveis a ataques externos, nomeadamente, por via das ciberguerras, enquanto o sistema de mercado é confrontado com tendências monopolistas em diversos sectores, limitando a concorrência.
Hoje, tribaliza-se a comunicação – há grupos para os quais as notícias, enquanto manifestação autónoma, não existem. Só existem as “nossas notícias” e as “falsidades dos outros”, segundo as narrativas a que se adere nas comunidades de pertença. A este contexto, junta-se a crise climática, que ensombra todo o planeta com um fantasma apocalíptico. E na procura de alternativas à morte de Deus, à morte da História, à morte da Verdade, regressamos ao politeísmo; a História é substituída por histórias; a Verdade por verdades. Não há Deus, há deuses. Não já do panteão grego, com Zeus, Era, Atena, Apolo, Artemis, Afrodite, Diónisos. Ou do panteão egípcio, com Osíris, Ísis, Horus, Seth, Ptah, Re. Agora, o panteão politeísta dominante é o dos heróis da Marvel: Homem Aranha, Demolidor, Mulher Invisível, Homem de Ferro, Capitão América, Hulk. Todos eles e elas são seres humanos “diferentes”, com superpoderes e fraquezas. Hulk, por exemplo, é um cientista tímido e frágil (Bruce Banner), que quando se irrita fica verde, grande, indestrutível.
No século XXI, o Reino Unido é um cosplay de Hulk, segundo Boris Johnson – um cosplay é uma representação de uma figura que se admira, através da imitação. Copia-se as vestes da figura poderosa que admira, assume-se a sua identidade, apodera-se dela.
É assim que Boris Johnson vê o Reino Unido – “Quanto mais enfurecem o Hulk, mais forte ele fica”, diz. E acrescenta: “Hulk consegue sempre escapar, por mais preso que pareça estar. O mesmo se passa com este país.”
O líder de uma das mais importantes potências mundiais ancora a força da Inglaterra num herói da Marvel.
A Marvel Comics nasceu nos anos 60 do século passado, e hoje é parte do conglomerado Walt Disney Company. Que também tem no seu panteão a Branca de Neve, o Bambi, o Dumbo, a Cinderela, a Fada Má, o Peter Pã.
O discurso do poder, os elementos que geram identidades de pertença, bem se vê por este exemplo, já nem sempre se ancoram na ideia de Justiça, de Deus, da Razão. O próprio poder estatal sustenta-se na sua disneynealização.
Os cidadãos dificilmente compreenderiam a mensagem política, se Boris dissesse que o inglês S. Jorge iria enfrentar o Dragão da União Europeia. Ou que a Justiça (conceito demasiadamente desacreditado) prevaleceria. Ou que a Razão haveria de se impor.
O Poder precisa de usar metáforas para comunicar. As atuais envolvem, por exemplo, a Fada Má, Hulk, Boris, Peter Pã, Trump, Bambi, Putin, o Homem de Ferro, a Rainha de Inglaterra, Sininho e o Imperador do Japão. Afinal, não fazem todos e todas parte do mesmo nebuloso altar identitário sobre o qual colocamos, hoje, as nossas velinhas?
Perante a avassaladora máquina das narrativas fracas que povoam e intoxicam a comunicação, diversos líderes de países democráticos, em vez de veicularem discursos fiáveis, seguem a tendência de seduzir as populações com as novas histórias da carochinha. Evidentemente, a infantilização e irracionalidade dos sistemas políticos é um erro que se paga caro.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico