A saída de Morales foi a explosão de uma granada na América Latina

A crise política criada pelas acusações de fraude nas presidenciais bolivianas, que levou à renúncia e fuga do país do Presidente, é um imenso dominó cujas peças ainda estão a cair, sem que se veja o resultado final.

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Evo MOrales David Mercado /Reuters

A queda forçada de um símbolo do socialismo provocou ondas de choque de Buenos Aires a Washington e está a pôr os governos da América Latina uns contra os outros.

O México, que ainda há pouco tempo proclamou que se manteria afastado dos assuntos dos outros países, mergulhou na crise boliviana ao dar asilo ao antigo presidente Evo Morales. O Presidente eleito da Argentina, Alberto Fernández, juntou-se ao México no apoio a Morales, dizendo que foi vítima de um golpe. Previsivelmente, Venezuela e Cuba também condenaram a forma como Morales foi tratado.

Os aliados dos Estados Unidos, Brasil e Colômbia, foram mais contidos do que o presidente Donald Trump, que disse que a saída de Morales do poder fortalece a democracia na região e reconheceu a sua autoproclamada sucessora, a senadora Jeanine Añez. Luis Almagro, secretário-geral da Organização de Estados Americanos (OEA), disse que Morales errou ao tentar manter o poder através de eleições que a organização considerou manipuladas. 

As reacções reflectem as amplas divergências entre os dirigentes socialistas e conservadores numa região onde os militares desempenham, de tempo a tempo, um papel significativo – o que significa que há pouca possibilidade de se encontrar uma resposta regional conjunta para os problemas no país vizinho, apesar de a Bolívia continuar mergulhada em violência e de ainda não haver um caminho claro que conduza a novas eleições.

Outros países da região estão mais preocupados com os seus próprios problemas. Protestos tomaram conta do Chile, onde o Presidente, Sebastian Piñera, enfrenta uma revolta há um mês – os partidos chegaram a um acordo esta semana para começar a fazer uma reforma da Constituição.

Mobilizar as bases

“Basicamente, cada país está a usar a crise na Bolívia para mobilizar as suas bases”, explica Oliver Stuenkel, professor de Relações Internacionais na Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo (Brasil). “Os governos de esquerda dizem que é um golpe, os governos de direita dizem que é uma vitória da democracia, por isso não há uma liderança.”

A saída de Morales permitiu ao México marcar distâncias de Trump. O cálculo é que a Bolívia não é uma prioridade na política externa da Casa Branca neste momento e que uma diplomacia regional mais assertiva eleva o estatuto do México na América Latina.

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Protestos contra o afastamento de Evo Morales Rodrigo Sura/EPA

“A nossa boa relação com os Estados Unidos não deve ser baseada na submissão, mas no respeito e na coexistência de duas ideias distintas”, disse Marcelo Ebrard, o ministro mexicano dos Negócios Estrangeiros, que é visto como um potencial candidato às eleições presidenciais de 2024 (os chefes de Estado mexicanos cumprem um só mandato de seis anos).

O México tem uma longa tradição de conceder asilo político a líderes estrangeiros, de Trotski ao xá do Irão. Desta vez disse que Morales corria risco de vida para justificar a decisão. E manteve-a, apesar de Morales estar a usar o seu estatuto de refugiado com plataforma para atacar os seus adversários na Bolívia. “Enquanto for vivo a luta continua”, disse minutos depois de aterrar no aeroporto da Cidade do México.

A decisão proporciona também ao Presidente mexicano, Andrés Manuel López Obrador, uma distracção dos problemas domésticos, além de que agrada às suas bases, que incluem a ala política mais à esquerda. Apesar de a sua popularidade continuar em alta, foi atingido pela sua incapacidade de controlar a violência dos gangs de narcotráfico em vastas áreas do país.

“Isto também ajuda Ebrard a posicionar-se como um líder regional e a reforçar o seu papel dentro do seu partido”, o Partido da Revolução Democrática (o de Obrador), diz Daniel Kerner, director para a América Latina do think tank político Eurasia Group.

Por outro lado, o asilo de Morales também gerou críticas internas. O asilo devia ser pedido pelo visado e não oferecido por um governo, defendeu Andrés Rozental, diplomata e antigo vice-ministro dos Negócios Estrangeiros. 

O asilo é garantido “aos que são alvo de perseguição política, não a políticos que escarnecem da democracia constitucional dos seus países, forçam a reeleição e cometem fraude eleitoral”, disse Rozental, que pertenceu ao Governo mexicano quando o Partido Revolucionário Institucional estava no poder. O chefe da diplomacia mexicana não quis comentar estas declarações.

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Funeral de apoiante de Morales morto pela polícia Marco Bello/REUTERS

Os estilhaços argentinos

Alberto Fernández, que toma posse como Presidente da Argentina a 10 de Dezembro, criticou a declaração de Trump contra Evo Morales, dizendo que a política externa dos Estados Unidos voltou a regredir para o apoio a intervenções militares – o que pode criar um clima adverso nas relações bilaterais que são cruciais para o sucesso da economia argentina.

Assim que Fernández tomar posse vai ter de negociar os 56 mil milhões de dólares [mais de 50 mil milhões de euros] de linha de crédito com o Fundo Monetário Internacional (FMI), sediado em Washington. O Governo dos Estados Unidos é o principal financiador do FMI.

Um porta-voz do Departamento de Estado disse que os dois países caracterizam de forma diferente os acontecimentos na Bolívia, mas que todas as democracias devem apoiar os princípios fundamentais que regem toda a América, incluindo o Estado de direito.

Fernández também está a ser acusado de se centrar na Bolívia para evitar ser questionado sobre as suas políticas económicas para o país. Uma fonte próxima de Fernández disse que o interesse do Presidente eleito na Bolívia é natural, dada magnitude da crise.

Alguns analistas observam que Fernández faz parte de um movimento político duradouro, o peronismo, que tem a crença histórica de que criticar um país sobre um dado assunto não afecta as relações mais alargadas.

“Eles não percebem que o que acontece quanto a um assunto reflecte-se no outro”, disse Juan Negri, professor de Ciência Política na Universidade Torcuato di Tella, em Buenos Aires. “Os EUA não funcionam assim – todas as questões estão inter-relacionadas, os EUA consideram que um relacionamento é total.”

O relacionamento entre o México e o próximo governo argentino está a ser vigiado de perto pelo Governo de direita de Jair Bolsonaro no Brasil. Nem Bolsonaro nem Fernández esconderam as suas diferenças ideológicas e a Bolívia pode ser mais um espinho a perturbar as relações entre os dois países. O Brasil foi rápido a reconhecer Jeanine Añez como Presidente da Bolívia.

Em Brasília, os conselheiros advertiram que a política externa de Fernández pode ter consequências económicas para um país que tem no Brasil o seu principal parceiro comercial. Um deles considerou que esse papel mais activo de Obrador destina-se a desviar a atenção dos media dos problemas domésticos.

A Venezuela, disse esta fonte, vai continuar a ser a pedra-de-toque das divergências políticas na região.

Claro que ainda há o problema da própria Bolívia. Se a oposição, profundamente conservadora e religiosa, conseguir manter o poder, o país pode aproximar-se dos Estados Unidos e afastar-se dos aliados tradicionais da esquerda.

Um cenário idêntico pode acontecer no Uruguai, onde algumas sondagens dão o candidato de centro-direita, Luis Lacalle Pou, na frente das presidenciais de 24 de Novembro. A acontecer, seria o fim de 15 anos da Frente Ampla, de esquerda.

Com Nacha Cattan, Samy Adghirni, Patrick Gillespie, Jorgelina do Rosario e Eric Martin

Exclusivo PÚBLICO/Bloomberg-The Washington Post