Num doce balanço a caminho do Nilo

Falam de corações palpitantes, seios que roubam o brilho do sol, dedos que são como botões de lótus, saudades que provocam doenças. Estão entre os textos amorosos mais antigos da humanidade e foram compostos no Antigo Egipto.

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No meio da pesquisa para a escrita de um livro, acabei por encontrar alguns poemas de amor do Antigo Egipto. Compostos há cerca de 3500 anos, estão entre os textos amorosos mais antigos da humanidade. Falam de corações palpitantes, seios que roubam o brilho do sol, dedos que são como botões de lótus, saudades que provocam doenças. Para conhecer tais preciosidades não é preciso meter os pés na areia do deserto ou esgueirar-se por tumbas labirínticas. Basta procurar em qualquer site de buscas por “poemas de amor papiro Chester Beatty” (o nome é da biblioteca onde estão arquivados os originais). Há uma série de traduções diferentes disponíveis em inglês.

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No meio da pesquisa para a escrita de um livro, acabei por encontrar alguns poemas de amor do Antigo Egipto. Compostos há cerca de 3500 anos, estão entre os textos amorosos mais antigos da humanidade. Falam de corações palpitantes, seios que roubam o brilho do sol, dedos que são como botões de lótus, saudades que provocam doenças. Para conhecer tais preciosidades não é preciso meter os pés na areia do deserto ou esgueirar-se por tumbas labirínticas. Basta procurar em qualquer site de buscas por “poemas de amor papiro Chester Beatty” (o nome é da biblioteca onde estão arquivados os originais). Há uma série de traduções diferentes disponíveis em inglês.

Tais versos chegaram aos nossos dias através de papiros encontrados na década de 1930, no sítio arqueológico de Deir Almedina. O local abriga as ruínas de uma antiga vila de artesãos, cujas escavações forneceram importantes pistas sobre como era a vida da população comum no ancestral país africano, para além de seus nobres e faraós. O conjunto principal é formado por sete poemas, que alternam a voz masculina e a feminina. Estima-se que tenham sido produzidos entre 1500 a.C. e 1000 a.C. Alguns pesquisadores sustentam que pelo estilo da escrita, o local em que foram encontrados e pela sua recorrência, um indicativo de popularidade, tais poemas seriam, na verdade, canções. Hits-parade dos tempos de Osíris.

Impossível saber qual deles fazia mais sucesso na época, mas o que é mais citado por estudiosos hoje em dia é o poema (ou canção) número sete. Traduzo os primeiros versos a partir da versão para o inglês de Miriam Lichtheim, publicada pela Universidade da Califórnia. “Sete dias que não vejo minha irmã/ E a doença me invade/ Sinto pesar os braços e as pernas/ Meu corpo se esqueceu de mim.”

Irmã e irmão eram os termos como os apaixonados se chamavam nos poemas egípcios. Os versos que seguem contam a agonia gerada por aquela ausência. Médicos, mágicos, remédios e amuletos são testados. Mas nada funciona. Apenas a presença da amada pode curá-lo. “Quando ela abre seus olhos, meu corpo se renova/ A sua fala me faz mais forte/ Abraçá-la tira todo o meu mal/ Sete dias desde que ela se foi de mim”. É o mais antigo registo conhecido da dor de amor. O tema, cantado à exaustão por poetas de tantos povos e tantas épocas e que na língua portuguesa fez nascer a palavra saudade, tem ali o seu Génesis documentado.

E ainda há outros. O primeiro dos sete poemas começa assim: “Minha adorada, irmã sem igual/ mais bela de todas as belas/ Ela parece com a estrela da manhã/ No início de um ano de felicidade.” E o poeta segue a descrever em minúcias cada um daqueles múltiplos encantos. Até que percebemos que não é da mulher amada que ele fala, mas sim de uma beleza que viu passar e quis traduzir em palavras. Inaugurava, claro, uma nova e duradoura tradição da canção e da poesia.

“Com um gracioso passo, ela toca o chão/ Captura meu coração com seus movimentos/ Ela faz o pescoço de todos os homens/ Virar até que possam enxergá-la”. Assim era musa da beira do Nilo, há milénios passados. Alguém mais ouviu baixinho, vindo sabe-se lá de onde, um: “Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça/ É ela, menina, que vem e que passa/ Num doce balanço a caminho do mar”?