Churchill e Joe Biden são gagos? A ideologia pode cegar
Este debate é interessante e difícil. E só está a começar. Não vale a pena desencantar exemplos esdrúxulos.
Para máxima eficácia, por favor abrir os vídeos que acompanham este texto. O mais provável, no entanto, é não precisar de os ver, pois sabe que nem Winston Churchill nem Joe Biden são gagos. Ou, se são, têm uma gaguez imperceptível.
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Para máxima eficácia, por favor abrir os vídeos que acompanham este texto. O mais provável, no entanto, é não precisar de os ver, pois sabe que nem Winston Churchill nem Joe Biden são gagos. Ou, se são, têm uma gaguez imperceptível.
Joacine Katar-Moreira, deputada do Livre, tem gaguez severa. Vimos na campanha. Na sua estreia como oradora na Assembleia da República, a 25 de Outubro, gaguejou mais do que o habitual e foi muito difícil seguir o raciocínio. Ao ouvi-la pensei na aluna de arquitectura cega a quem o professor, depois de uns anos de aulas, convenceu a mudar de curso. Ser arquitecto implica ver a paisagem, o lugar onde se vai construir, o terreno, o comportamento da luz. Seria a gaguez severa num deputado o equivalente à cegueira num arquitecto ou num cirurgião?
Sendo natural que estivesse nervosa — como os outros estreantes — decidi dar tempo ao tempo. Mudei de plano ao ler os argumentos lançados em sua defesa. A professora Susana Peralta escreveu um texto para dizer que Katar-Moreira “não é a única política gaga” e que quem a critica tem medo da sua mensagem. A seguir, Jorge Fonseca de Almeida usou os mesmos exemplos para concluir que elogiamos homens brancos gagos e rejeitamos mulheres negras gagas.
Que exemplos deram? O ex-primeiro-ministro britânico Churchill, o ex-vice-Presidente dos EUA e actual candidato às presidenciais Joe Biden, e David Buxton, dos Liberais Democratas britânicos, que é surdo.
Cícero aprendeu com Aristóteles (e eu com eles) que dar “exemplos” — é essa a palavra que usam — é uma arma da argumentação eficaz. Quando queremos persuadir alguém de alguma coisa, devemos dar exemplos. “A partir dos exemplos, podemos induzir uma conclusão provável sobre o assunto em debate e, a partir desse exemplo, propor uma aplicação geral ou universal”, diz na introdução James M. May, autor de Cicero, How to Win an Argument – An Ancient Guide to the Art of Persuasion (Princeton University Press, 2016). Gosto de dar exemplos e fiquei contente quando descobri nesse livro que os mestres da retórica os recomendam.
Mas haja rigor. Os exemplos têm de ser decentes. Podem não ser à prova de bala, mas têm de ter adesão à realidade.
Ouçamos os políticos usados como exemplo. Comecei pelo discurso de vitória de Churchill na Câmara dos Comuns, conhecido como Blood, Toil, Tears and Sweat. São cinco minutos e 11 segundos e Churchill nunca gagueja. A dicção é entre o “sopinha de massa”, o ceceoso — pronunciando os “s” e os “z” com a ponta da língua entre os incisivos centrais — e o “falar pelo nariz”, como o próprio dizia, mas não é gaguez. Depois ouvi o discurso We Shall Never Surrender. São 12 minutos e não gagueja. A seguir ouvi o Their Finest Hour. São 30 minutos. Não gagueja. A BBC diz que alguns não foram gravados ao vivo, mas nos anos 1950. Terão sido editados?
Se está a pensar que a edição cortou a gaguez, vale a pena ver o filme do discurso no Congresso americano em 1941 — são as imagens, não apenas o som. São 16 minutos (e incluem a bela frase “what kind of a people do they think we are?”, referindo-se aos nazis) e não gagueja. Há muito que se debate se Churchill tinha uma ligeira gaguez. A WinstonChurchill.org, que reúne as mais prestigiadas organizações que estudam Churchill, diz que é um mito. Conta que na juventude Churchill treinava frases como “the Spanish ships I cannot see for they are not in sight” para corrigir a pronúncia do “s” e que foi a médicos por causa disso, mas não da gaguez. Era um “gago no armário” e ainda hoje os académicos o escondem? Não consigo entender a polémica nem o que parece um esforço para tornar Churchill gago ou mais gago do que era — se era.
O exemplo de Joe Biden é mais esquisito. No ano em que acompanhei o impeachment de Bill Clinton, Biden era presidente do comité do Senado para os Assuntos Judiciários. Passou horas a falar nas audiências e eu passei horas a ver as suas intervenções em directo. Foi nessa altura que descobri a força da sua retórica. Durante meses, ouvi-o falar, exaltar-se e disparar perguntas à velocidade da luz. Nunca o ouvi gaguejar. Aprendi agora que lutou toda a vida contra a gaguez e lia poesia ao espelho para estudar o movimento dos lábios.
Mas o tema que se discute não é a luta dos gagos contra a gaguez. Nem se um gago pode ser político. Claro que pode. Discutem-se os argumentos usados para defender Katar-Moreira e acusar os que disseram que devia ter um intérprete como sendo racistas que queriam descredibilizar o Livre.
Já agora, David Buxton usa legendas nos vídeos e uma intérprete faz o voice-over. Fiquei baralhada. Parece ser um argumento, afinal, a favor dos que pedem que alguém leia as intervenções de Katar-Moreira. Este debate é interessante e difícil. E só está a começar. Não vale a pena desencantar exemplos esdrúxulos.