Afinal, o que querem os nossos “aliados naturais”?
A exigência de reconhecimento - e de quase vénia – que é feita aos sujeitos racializados pelos “aliados naturais” por causa do seu compromisso antirracista soa a chantagem e acaba por transformar o racismo num problema só das vítimas e não da sociedade maioritária.
De janeiro para cá que a torrente de ódio racista nas redes sociais e na imprensa vai crescendo: dos casos do bairro da Jamaica (Seixal) até à virulência do debate eleitoral, acompanhado por uma higienização da extrema-direita e pela recuperação da sua retórica por senadores do comentariado político.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
De janeiro para cá que a torrente de ódio racista nas redes sociais e na imprensa vai crescendo: dos casos do bairro da Jamaica (Seixal) até à virulência do debate eleitoral, acompanhado por uma higienização da extrema-direita e pela recuperação da sua retórica por senadores do comentariado político.
Esta circunstância ditou a falência da cartilha do “Pedro e o Lobo” que apontava os exageros e a irresponsabilidade do discurso antirracista, acusado de errar nos alvos e de, ao mesmo tempo, acordar os fascistas (sic). Junta-se agora ao coro da indignação a crítica ao “identitarismo” e o aviso sobre o risco de alienação dos “aliados naturais”. Com o aumento de visibilidade da agenda anti-racista, várias figuras públicas com espaço mediático e da comunicação social têm-se queixado do risco de alienação das “alianças naturais” por causa de uma suposta radicalidade de posições dos ativistas que acabaria por afastar os aliados.
O debate em Portugal sobre estratégias e alianças no combate ao racismo está cada vez mais marcado por uma tensão entre militantes racializados e apoiantes brancos.
As injunções, os ataques e as críticas ao ativismo antirracista multiplicam-se no espaço público, assim como as acusações de divisionismo, de vitimização, de desvio do essencial e de falta de consistência ideológica e de bom senso. Para além dos ataques cerrados de sectores mais reacionários da sociedade contra o antirracismo, os militantes racializados têm ainda de lidar com os ataques destes apoiantes da luta antirracista.
Ora, não sabem os “aliados naturais” que em plena guerra não se dispara contra aliados na trincheira – simulando “fogo amigo”? Não percebem “os aliados naturais” que continuarem a atacar insidiosamente sujeitos racializados por estes não se terem supostamente solidarizado com eles contra outros sujeitos racializados, insinuando assim que tal se deve a subjetividades cromáticas, estão eles próprios a cavar ainda mais o fosso do divisionismo que muito os preocupa? Porque esperam os “aliados naturais” serem apaparicados por pessoas racializadas por lutarem ao seu lado?
A exigência de reconhecimento - e de quase vénia – que é feita aos sujeitos racializados pelos “aliados naturais” por causa do seu compromisso antirracista soa a chantagem e acaba por transformar o racismo num problema só das vítimas e não da sociedade maioritária.
Enquanto houver quem não queira perceber isso, ficando numa posição arrogante de poder criticar os aliados e não saber encaixar a contracrítica dos visados, continuaremos inutilmente a discutir sobre como construir alianças.
E assim será mais difícil discutir e interpretar, não apenas o lugar de enunciação das vítimas de racismo, mas também a legitimidade de quem sofre na pele a violência para escolher as formas de luta que achar melhor responder às suas necessidades. O que naturalmente não significa isenção de crítica ou de manifestação de divergência quando as houver. Porém, uma crítica construtiva tem de propor caminhos alternativos e não se pode limitar a juízos morais e a injunções ao bom senso, como tem sido até agora.
Pois esta lógica de espelho obsessivamente autocentrada não concorre seguramente para juntar forças, como exigem os “aliados naturais”. Quem está preocupado com a correlação de forças que vai efetivamente sendo, cada vez mais, desfavorável nestas áreas não pode, nos momentos em que estamos a viver, apoucar, infantilizar e desqualificar as formas de luta que as vítimas de racismo e suas organizações escolheram, esperando que estes engolem em seco e se calem.
Por achar que a exigência de solidariedade deve ser maior para com estes “aliados naturais” é que acho indesculpável a sua alienação às formas de luta que os racializados entendem ser as melhores para engajarem a luta. Seria bom que “os aliados naturais” evitassem reproduzir os truques retóricos da extrema-direita que há anos, para desqualificar a luta-antirrracista, invoca o “risco comunitarista” hoje transumutado em “risco identitário” no debate sobre desigualdades raciais.
E deviam atentar à forma como, por exemplo, o conceito de “marxismo cultural” mobilizado pela facho-esfera está a vingar um pouco por toda a parte, porque os ideólogos do neo-populismo fascista perceberam que podem convocar a identidade para excluir corpos sociais indesejáveis da comunidade política.
Numa tentativa de ilustrar a falta de consistência ideológico dos atuais coletivos racializados, convocar de repente o legado dos Combahee River Collective é pouco sério. É de duvidosa intenção escolher fazer isso, esquecendo-se, por exemplo, de convocar pensadoras negras como Angela Davis, Patricia Collins, Bell Hooks ou Leila Gonzalez que teorizaram melhor que ninguém a relação intrínseca entra as categorias de raça, género e classe na luta pela transformação social, ou parafrasear Fanon sobre o perigo do essencialismo sem falar da sua crítica ao essencialismo eurocêntrico.
Dizer que nos atos eleitorais os sujeitos políticos racializados não votam, e que é a classe média branca que elege os seus representantes, e acenar com o “identitarismo”, roça a desonestidade intelectual. Só espero que na próxima exegese televisiva haja, por exemplo, espaço para falar do conceito de “color line” de W. E. B. Du Bois, este “esquerdalho identitário” e, como se sabe, pouco versado em doutrinas marxistas.
Para começar, os “aliados naturais” terão de se habituar que não haverá luta anti-racista sem pessoas racializadas e, muito menos, contra elas, tal como se vão habituando que não haverá luta feminista ou contra a homofobia sem mulheres e pessoas lgbtqi+.
Portanto, quem está muito preocupado com a correlação de forças não pode erguer as pessoas racializadas como um problema para a luta antirracista. Para além de que terão se habituar ao incomodo de existir a possibilidade de as suas posicionalidades serem postas em causa pelos sujeitos racializados.
Terão ainda de se convencer que ser “aliado natural” não significa estar sempre e totalmente de acordo sobre as formas de luta, nem ter o poder de procuração política para decidir o que está ou não certo. Isto sim, será um bom início de conversa sobre o tipo de alianças que se quer construir e qual o lugar e/ou sentido do protagonismo dos aliados, em cada momento e em cada circunstância. Afinal, o que querem os nossos “aliados naturais”?
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico