Raymond Poulidor e a arte de rentabilizar derrotas
O ciclista francês fez das derrotas um estatuto. Rentabilizou-as e tornou-se grande, à sua maneira. Morreu nesta quarta-feira, aos 83 anos.
A eternidade, no desporto e no ciclismo, costuma esperar os campeões. Os que festejam, erguem os braços e vestem de amarelo no dia que mais interessa. Outros há, porém, que chegam à eternidade por um caminho alternativo. São poucos, mas existem. Raymond Poulidor fez da derrota um estatuto e do insucesso uma marca. Rentabilizou-os. Nesta quarta-feira, teve a derradeira e mais definitiva derrota, morrendo aos 83 anos.
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A eternidade, no desporto e no ciclismo, costuma esperar os campeões. Os que festejam, erguem os braços e vestem de amarelo no dia que mais interessa. Outros há, porém, que chegam à eternidade por um caminho alternativo. São poucos, mas existem. Raymond Poulidor fez da derrota um estatuto e do insucesso uma marca. Rentabilizou-os. Nesta quarta-feira, teve a derradeira e mais definitiva derrota, morrendo aos 83 anos.
Raymond Poulidor foi, provavelmente, o mais conhecido dos derrotados. Alcunhado de “eterno segundo” – foi duas vezes segundo classificado do Tour e uma vez vice-campeão do mundo –, o francês fez pior do que isso: somou cinco terceiros lugares no Tour e três nos Mundiais. Mais do que “eterno segundo”, Poulidor foi, isso sim, o eterno derrotado, uma marca que nem as quase 200 vitórias na carreira e a Volta a Espanha conquistada em 1964 conseguiram apagar.
Ser recordista de pódios na Volta a França é uma alegria amarga: por um lado, é um sinal de competência e consistência. Por outro, é o atestar da incapacidade de chegar ao final vestido de amarelo – uma camisola na qual nunca chegou a tocar, sequer, apesar das 14 participações na corrida. Os famosos olhos achinesados permitiram-lhe, ainda a preto e branco, ver muita gente vestir aquela camisola. Ver, apenas. Mas com um sorriso. Porque havia sempre um sorriso em Poulidor.
Este ciclista conquistou a eternidade por uma via alternativa. Não que fosse demasiado fraco para vencer, mas porque a competição com Jacques Anquetil, primeiro, e Eddie Merckx, depois, lhe roubaram o estrelato. Agora, olhando para o passado, é fácil perceber que, se Poulidor tivesse vestido ou vencido a camisola amarela, por uma vez que fosse, não seria tão falado. E o próprio chegou a assumi-lo. “Se a tivesse envergado [camisola amarela], não se falaria tanto de mim passados estes anos todos, já depois de ter acabado a carreira. O meu nome está ligado a ser o “segundão”, disse, à agência EFE, em Julho.
“Poupou” tornou-se, pela incapacidade de vencer, um favorito para o público francês, numa manifestação da clássica simpatia pelos mais fracos. Quanto mais azar tinha, mais o público o apoiava. E mais dinheiro Poulidor ganhava com esta forma estranha de mediatismo.
A sina de Poulidor tem paralelo na famosa história da lanterna-vermelha da Volta a França. Como contado neste texto, ser último classificado no Tour foi, durante muitos anos, um ponto de honra. Era um objectivo real dos que sabiam que não conseguiriam vencer, mas que, sendo últimos classificados, seriam falados pelo insucesso. Mas seriam falados, pelo menos. Como Poulidor.
Rivalidade e amizade com Anquetil
A rivalidade entre Anquetil e Poulidor foi bem feroz. A história de uma das mais belas etapas do Tour comprova-o, mas não só. Dessa rivalidade também é prova a famosa história da perseguição a um pobre italiano, num Giro. Um ciclista escapou do pelotão e a equipa de Anquetil iniciou uma feroz perseguição ao fugitivo, apesar de este não ser uma ameaça à classificação geral.
Depois de ser apanhado pela perseguição agressiva da equipa de Anquetil, o azarado fugitivo perguntou por que motivo o tinham perseguido daquela forma. A explicação era simples: ele chamava-se Polidori. Gianfranco Polidori. Um pobre italiano que estava no sítio errado, à hora errada e com um apelido errado, que fazia Anquetil lembrar-se de Poulidor, justificando a perseguição.
Jacques Anquetil foi, para “Poupou”, o primeiro e grande rival, mas foi, também, um companheiro de vida. E foi graças a Anquetil que Poulidor percebeu, um dia, que não teria outra hipótese que não ser segundo. Em tudo e para sempre. Em 1987, Anquetil sabia que tinha um cancro no estômago e, perante Poulidor, disparou, em público: “Desculpa, Raymond, mas continuarás a ser segundo. Eu irei primeiro”. Poulidor vai embora, mas deixa por cá o neto Mathieu van der Poel – para muitos, o grande prodígio do ciclismo mundial.
Raymond Poulidor foi um homem que se tornou conhecido pela incapacidade de vencer os “tubarões”, mas que se tornou um deles. À sua maneira.