Falemos então de igualdade

É tempo da Esquerda assumir a luta pela Igualdade com todas as letras. E defender a ideia de que pode haver outros motores para fazer andar as sociedades para além do lucro individual.

A excelente entrevista que a Joacine Moreira deu ao PÚBLICO, e em que enunciou que não há liberdade sem igualdade, foi uma pedrada no charco. O artigo de Francisco Assis a apoiá-la completou a questão. Ele, que foi sempre honesto e claro na sua posição contra a “geringonça" e que dava abertura àquilo que se poderá chamar de Bloco Central, surpreendeu muita gente.

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A excelente entrevista que a Joacine Moreira deu ao PÚBLICO, e em que enunciou que não há liberdade sem igualdade, foi uma pedrada no charco. O artigo de Francisco Assis a apoiá-la completou a questão. Ele, que foi sempre honesto e claro na sua posição contra a “geringonça" e que dava abertura àquilo que se poderá chamar de Bloco Central, surpreendeu muita gente.

O que veio nos jornais e nas redes sociais permite-nos falar de algo que andava esquecido no nosso linguajar político, seja à direita, seja à esquerda, enredados sempre nas tácticas e nas estratégias conjunturais. Falar contra as desigualdades não é o mesmo que falar de igualdade. Falemos então de igualdade. Esta noção política tem evoluído e falemos também para o futuro. Há a igualdade republicana, um corte, uma ruptura com o passado, que conferiu a cada cidadão um reconhecimento que nada tinha a ver com laços e heranças de sangue. “O meu cérebro é igual ao do filho do rei”, dizia uma cidadã durante o processo da Revolução Francesa. Esta dessacralização do rei e da aristocracia, perdida já no passado a divindade real, foi tão forte e beneficiamos hoje tanto dela que nem pensamos como é bom olhar todos olhos nos olhos e não baixar a cabeça. Alguns ainda o fazem…

Depois veio a igualdade democrática e cada cidadão adulto pode eleger e ser eleito. Levámos séculos para a atingir em Portugal e só a temos há quarenta e cinco anos! Foi acompanhada da liberdade. Quanto a esta, só a podemos sentir profundamente, aqueles que vivemos no tempo em que “as paredes tinham ouvidos” e perseguiam as pessoas que “tinham ideias”. Mas nos dias a seguir à libertação, muitos dissemos “o povo não come liberdade”. E passou a lutar pela igualdade, melhores condições de vida. Veio depois a igualdade nas leis e na Constituição: não discriminar ninguém por razões de género, de religião, de etnia ou de orientação sexual. Nesta altura do percurso a lei andou à frente do mundo subjectivo e da cultura. Ainda bem, porque pode ser evocada.

Continuámos a ouvir grandes líderes políticos de esquerda a falar dos “chefes de família”, os homens ou as viúvas, claro. E continuo a ouvir muitas das minhas doentes a queixarem-se do seu duplo ou triplo papel de trabalhadoras, domésticas e mães, num burnout de pouco sono. Alguns maridos gentilmente “ajudam”. Igualdade, isto? E numa reunião social ou política verifica-se que “onde há galos não cantam galinhas”, a voz das mulheres é ultrapassada e algumas optam por ser invisíveis. Igualdade, isto?

Quanto às diferenças de acordo com a pigmentação da pele (fenótipo dependente do local geográfico de origem e da respectiva inclinação do sol, digo isto muitas vezes, porque é necessário), essas resumem-se numa piada dos miúdos da Cova da Moura: “Se vires um branco a correr, está a fazer jogging, se for um negro está a fugir da polícia.” Quanto à orientação sexual, ainda há hoje psicólogos a quererem “curar” a preferência pelo mesmo sexo, como antigamente se atava às costas as mãozinhas das crianças que escreviam com a mão esquerda.

Não entrando ainda nas desigualdades sociais, dizia eu um dia numa reunião onde também estava a Joacine a preparar a exposição “O Império do Medo – escravatura, tráfico negreiro e racismo”, em Óbidos: “o pior mesmo é ser mulher e negra.” Ela acrescentou: “e ser empregada doméstica e mãe solteira.” O ramalhete das desigualdades completo. Substituiria ou acrescentaria o ser empregada doméstica por empregada na restauração, onde não há horários nem são admitidas reclamações, onde se faz chantagem, em relação a todos aqueles que vieram de fora e necessitam de um documento de trabalho para terem visto do SEF. E habitam nas periferias cada vez mais periféricas, quantas vezes em bairros improvisados. Igualdade, isto? Liberdade, isto?

As desigualdades são mundiais, como é evidente, mas também são grandes na Europa e no nosso país. Nos últimos 30 anos, nos países da OCDE (“valores culturais europeus”), os 10% mais ricos comparados com os 10% mais pobres passaram de um índice de 7,1 para 9,5 mais. Cada vez os “valores europeus” se acentuam mais… Desigualdade significa existência de pobreza, de acordo com os especialistas. Em Portugal, a taxa de pobreza atingiu o seu máximo em 2013 com 30,3% de pobres. Melhorou com a “geringonça” e em 2016 estava em 18,3% (Carlos Farinha Rodrigues). Uma boa parte desses pobres não são marginais, são trabalhadores, sem rendimento por pessoa na família suficiente para habitar e comer. Esses trabalhadores “vendem [barato] a vida para viver” (J. Berger e J. Mohr). Igualdade, isto? Liberdade, isto? Liberdade para se expandirem? Mas não se expandem. Delegam, quando delegam.

Vivemos pois em plena desigualdade e quando não há igualdade não há liberdade. Aliás, a comunicação social, nos seus vários meios, a mainstream, os valores, os bem comportados, relevam as grandes famílias, a que há pouco tempo se chamavam “boas” ou “gente de bem”. São destacados os CEO’s bem-sucedidos, os membros não executivos de variados conselhos de administração de empresas também bem-sucedidas. Fortunas sem trabalhar, aplicam os seus dinheiros na bolsa, passeiam pelos segredos do poder. Só quando lhes toca a descoberta da corrupção caiem em desgraça. Mas a corrupção judicialmente detectável é pouca e não é a ela que pode ser atribuído a maior parte do enriquecimento.

Tenho diante de mim os nomes das 25 famílias mais ricas de Portugal, cujo património, no total, correspondia em 2018 a 10% do PIB português. Estes são os “homens (e mulheres) bons”, usando a linguagem medieval. Não digo os nomes nem quero fulanizar. Quando morre algum dos “homens bons”, os jornais e a televisão dedicam-lhes primeiras páginas e aberturas. Comparo sempre com os sem-abrigo da minha rua. O Sr. Mário Correia, antigo trabalhador, a quem a minha vizinha arranjou um quarto e refeições, morreu no Verão e ela não pôde resgatá-lo para um funeral, porque o corpo ficou retido nos frigoríficos dos Hospitais Civis à espera de alguém de família, de acordo com a lei. E o Sr. Félix, antigo trabalhador gráfico, desapareceu da porta do supermercado onde recebia esmola e lia incessantemente jornais. Fiquei sem saber onde foi parar, embora me tenha dito que tinha ocupado uma casa devoluta.

Quando oiço falar nos funerais dos “homens mais ricos de Portugal”, honrados na voz pública, lembro-me sempre destes dois que talvez possam representar os mais pobres de Portugal. A Esquerda deixou de falar de Igualdade, fala de luta contra as desigualdades, tal como a direita “social-democrata”. A esta gostaria de perguntar olhos nos olhos se são pela Igualdade de facto ou apenas pela “igualdade de oportunidades”, versão adocicada dos que de facto são pelo mercado e pela concorrência, acompanhados de solidariedade. Na melhor das versões.

É altura da Esquerda não ter medo nem vergonha de falar de Igualdade de facto. De nascimento, de habitação, de alimentação, de escola, de acesso à Saúde. A igualdade de nascimento é uma utopia? Nos países mais iguais como os escandinavos, ainda há grupos, elites, distinções pela cultura, separadas das desigualdades económicas e sociais. Mas tão diferentes das nossas!

É tempo da Esquerda assumir a luta pela Igualdade com todas as letras. E defender a ideia de que pode haver outros motores para fazer andar as sociedades para além do lucro individual – a descoberta, a investigação, a paixão pela ciência, pela arte, pela criatividade. É com certeza isso que tem movido os médicos, os investigadores, os artistas. Não é o lucro com certeza.