Derrete-me aí sal que eu preciso de electricidade
A chegada dos contadores inteligentes às casas foi um mero aviso aos mais distraídos: a inovação vai mudar a nossa relação com a electricidade.
Chega-se a casa e faz-se o jantar com energia caseira, gerada durante o dia por um sistema termo-solar que nos dá electricidade para o fogão e energia térmica para aquecer a água do duche. O frigorífico assinala que está quase a avariar, o telemóvel toca avisando que recebeu o relatório de sustentabilidade, o carro eléctrico vai ser carregado na garagem durante a noite, mas alguma coisa correu mal: na manhã seguinte, a bateria não foi carregada. Liga-se para o comercializador, que não tem registo de avarias na rede e, através de uma app, contacta três vizinhos nossos para confirmar se eles tiveram problemas. A resposta foi não. Conclusão: fomos nós que não colocámos a ficha correctamente na tomada. Amanhã vamos comprar tomadas inteligentes.
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Chega-se a casa e faz-se o jantar com energia caseira, gerada durante o dia por um sistema termo-solar que nos dá electricidade para o fogão e energia térmica para aquecer a água do duche. O frigorífico assinala que está quase a avariar, o telemóvel toca avisando que recebeu o relatório de sustentabilidade, o carro eléctrico vai ser carregado na garagem durante a noite, mas alguma coisa correu mal: na manhã seguinte, a bateria não foi carregada. Liga-se para o comercializador, que não tem registo de avarias na rede e, através de uma app, contacta três vizinhos nossos para confirmar se eles tiveram problemas. A resposta foi não. Conclusão: fomos nós que não colocámos a ficha correctamente na tomada. Amanhã vamos comprar tomadas inteligentes.
A domótica das casas inteligentes, conectadas, recheadas de sensores, em que controlamos luzes pela voz ou ligamos e desligamos aparelhos apenas com um movimento de mãos, já não é novidade mas em 2019 há cenários que ainda parecem ficção. Mas a realidade caminha a passos largos nesse sentido, porque há inovação tangível que está a chegar ao mercado. Esta semana, Portugal foi uma montra de muita dessa inovação, com cerca de 10% das mais de 2000 startups que se apresentaram na Web Summit, em Lisboa, ligadas ao sector eléctrico ou com tecnologia aplicável.
Ninguém apresentou uma bola de cristal que permitisse perceber quando haverá mudanças. Mas estas parecem ser inegáveis.
“A principal inovação chegará quando se deixar de se pagar pelo consumo energético e se passar a pagar a potência”, diz Jean-Marc Coulon, um belga que trabalhou durante anos na Philips e tem longa carreira na electrónica. O que é que isso significa? “A energia está a tornar-se gratuita, o sol não custa dinheiro, o vento não custa dinheiro, ninguém tem de pagar por eles. O que temos todos de pagar é o acesso à potência”, começa por explicar este engenheiro que adora transformar ideias em produtos.
Para exemplificar, recorre ao que chama “uma analogia com o passado” nas telecomunicações. “Antigamente pagávamos a nossa ligação à Internet com base no kilobyte, isto é, o tráfego. Hoje já não pagamos isso; o que nos cobram é o valor do acesso de 100 Mb/s. Esta mesma transição há-de acontecer na energia eléctrica: vamos deixar de pagar os 2 kw gastos com um electrodoméstico e pagaremos pelo acesso a uma potência contratada.”
Imaginemos que esse electrodoméstico é um frigorífico com cinco anos. Pode-se considerar um aparelho jovem, mas isso não significa que não esteja em risco de falhar. Mesmo que não seja um electrodoméstico “inteligente” – no sentido em que não tem ligação à internet e, por si só, emita dados –, no futuro próximo será possível prever se este aparelho (ou outro qualquer electrodoméstico lá de casa) está em vias de avariar.
Luís Manuel, director executivo da EDP Inovação dá este exemplo para explicar que “basta ser possível obter dados relativos aos sinais de frequência e consumo eléctrico com o objectivo de determinar se algum dos electrodomésticos está ou não próximo de ter um problema”. “Podemos antever problemas com base na análise de dados e fazer manutenção preditiva. As assinaturas de frequência e o consumo de energia por parte de electrodomésticos podem dar informações críticas sobre o estado de saúde” do aparelho, resume.
Daniel Dora é um analista de dados do Brasil. Tem uma empresa, a ClubeWatt, que está a abrir caminho nesse mundo em que os dados são o transporte da inovação. Através deles, podemos poupar na factura, por exemplo. “Regra geral, só falamos com a nossa eléctrica em três situações: quando contratamos; quando pagamos; e quando há uma falha de energia. Mas no futuro nós podemos comunicar em permanência, através da recolha de dados, seja por sensores que recolhem dados em nossas casas, seja a partir da análise da factura do consumo, e transformar isso em mensagens que nos ajudam a tomar melhores decisões”, afirma.
Têm surgido inúmeras empresas que se situam nesta área da recolha e da análise de dados ligados ao nosso consumo eléctrico, seja nas nossas casas, ou espaços comerciais, industriais ou públicos. O princípio é quase sempre o mesmo: reunir informação em bases de dados que, por diferentes operações (comparações, por exemplo), permitem avisar-nos se estamos a gerir bem ou não o consumo.
Por mais improvável que pareça ter de depender de uma notificação do telemóvel para poupar energia, a verdade é que muita gente precisa de uma voz de comando. Daniel Dora argumenta que, regra geral, somos péssimos a gerir a electricidade. Diz mesmo que vivemos com “fugas permanentes” às quais “não ligamos, porque são invisíveis”. “Quando há uma fuga de água, nós agimos logo, porque vemos a água a acumular-se nalgum sítio. Com a electricidade, não é assim: vamos de férias e deixamos tudo conectado; dormimos com coisas acesas; não utilizamos os períodos mais vantajosos para consumir ao mais baixo preço”, sintetiza.
Portanto, num futuro próximo, um erro de gestão do consumo pode pôr o nosso telemóvel a apitar ou o assistente virtual doméstico a apontar-nos a necessidade de corrigir qualquer coisa.
Na Suécia, a Sun Labs é uma das empresas que produz relatórios de sustentabilidade. Pode ser sobre o nosso consumo de plástico, de papel ou de energia. A sustentabilidade é uma questão-chave, aponta Luís Manuel, que acredita que “os processos de inovação beneficiam muito da convergência”. “Há muitas coisas que podem ser utilizadas neste sector e que nasceram noutros”, refere, salientando que esta convergência será acompanhada por uma “relação cada vez mais personalizada” dos consumidores com a electricidade. “Um dos campos onde isso já se nota é o grau de informação que as pessoas querem ter em relação ao consumo. De onde vem a energia? Há quem pague diferencial para garantir que consome energia verde”, anota o mesmo responsável da EDP Inovação. E como é que um cliente sabe que não há qualquer forma de o enganarem em relação à origem renovável da energia? Se for utilizada a tecnologia blockchain na certificação.
Esta também chegará – e bastante mais cedo – aos serviços de pagamento. Saldar uma factura com criptomoedas é uma tendência em alguns segmentos de mercado emergentes, afiança Luís Manuel, que foi um dos membros do júri que elegeu a australiana LexX como a startup vencedora do programa de aceleração da EDP. A proposta ganhadora resolve um problema às empresas – e é natural que sendo patrocinado pela EDP, as nove propostas de negócio andassem à volta das necessidades das chamadas utilities.
Mas a diversidade geográfica e de propostas é um bom exemplo de como a inovação que mudará paulatinamente a forma como produzimos, distribuímos, compramos e vendemos electricidade é como um campo de flores cheio de abelhas na Primavera. Será uma espécie de polinização cruzada.
Foi na cozinha que Jean-Marc Coulon, que se apresentou em Lisboa sozinho, encontrou a solução para o desafio dele, que é a geração e armazenamento de energia gratuita. Tentando contornar as limitações das baterias, dos painéis solares fotovoltaicos, da poluição inerente à produção destes equipamentos, Coulon concebeu uma tecnologia para a geração distribuída de energia. No essencial, a ideia é captar luz solar através de um espelho, conduzir a energia para ser usada para derreter cristais de sal, um processo que permite acumular muita energia (permitindo um armazenamento “dez vezes mais barato” e sem materiais poluentes). Depois, 30% dessa energia pode ser usada sob a forma de electricidade e a restante para aquecimento (cogeração) em casas de cinco ou dez famílias. Uma solução destas, estima Coulon, custaria 50 mil euros a montar num prédio, mas em contrapartida duraria meio século e garantiria dez anos de energia gratuita, pelo menos.
Há muitas outras soluções de armazenamento e a dúvida está em qual delas vingará primeiro, provando ser viável em termos comerciais e de escala. Mas desde os contratos legais à manutenção de infra-estruturas, da forma como se gera à forma como se armazena, muitas novidades estão hoje a ser testadas no sector eléctrico.
O Fórum Económico Mundial, num documento sobre a inovação no sector eléctrico, aponta o óbvio: a velocidade a que o nosso mundo vai mudar depende de quatro factores – regulação; infra-estrutura; modelo de negócio; e dos clientes, da procura.
Para Jean-Marc Coulon, no consumo doméstico, as grandes mudanças vão começar a fazer-se sentir dentro de dois a cinco anos.