Outro caso entre a Lei e a Ética
A recente nomeação de dois juízes como secretários de Estado do actual Governo levanta questões de ética judicial e de confiança na Justiça.
Faz amanhã um ano que critiquei aqui a ida de Sérgio Moro para ministro da Justiça do Brasil e, em geral, o exercício de funções governativas de nomeação e confiança política por juízes (PÚBLICO, “Justiça e política, água e azeite”). A recente nomeação de dois juízes como secretários de Estado do actual Governo impõe, em coerência, o regresso ao assunto.
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Faz amanhã um ano que critiquei aqui a ida de Sérgio Moro para ministro da Justiça do Brasil e, em geral, o exercício de funções governativas de nomeação e confiança política por juízes (PÚBLICO, “Justiça e política, água e azeite”). A recente nomeação de dois juízes como secretários de Estado do actual Governo impõe, em coerência, o regresso ao assunto.
O problema não é de legalidade ou ilegalidade. Apesar de proibir o exercício de actividades político-partidárias de carácter público, o Estatuto dos Magistrados Judiciais admite expressamente a nomeação de juízes como membros do Governo. O problema também não é de ser esta ou aquela pessoa porque a situação não é sequer inédita. Para além da ministra da Justiça em funções, que é magistrada de carreira do Ministério Público e foi entretanto nomeada juíza do Supremo Tribunal de Justiça, exerceram cargos de ministros e secretários de Estado na área da justiça vários juízes de carreira: Laborinho Lúcio e Borges Soeiro, nos dois governos de Cavaco Silva, José Matos Fernandes, no primeiro governo de António Guterres, António Rodrigues Ribeiro, no governo de Santana Lopes, e Helena Mesquita Ribeiro, no anterior governo de António Costa.
O problema é, isso sim, de ética judicial e de confiança na Justiça. Os Princípios de Bangalore de Conduta Judicial, aprovados em 2002 pelo Grupo de Integridade Judicial, sob os auspícios das Nações Unidas, e depois acolhidos na Resolução 2003/43, da Comissão de Direitos Humanos, estabelecem que “o juiz não só deve estar isento de conexões inapropriadas e influências dos ramos executivo e legislativo do governo, mas deve também parecer livre delas, para um observador sensato”. Nos comentários aos Princípios de Bangalore, elaborados em 2007 sobre a égide do Escritório contra Drogas e Crime, das Nações Unidas, um dos exemplos dados para ilustrar essas conexões impróprias é precisamente a aceitação, pelo juiz, de cargos governativos: “O movimento alternado entre altas posições no Executivo e no Legislativo promove bem o tipo de mistura de funções que o conceito de separação de poderes visa evitar.”
Também o Compromisso Ético dos Juízes Portugueses – Princípios para a Qualidade e Responsabilidade, aprovado em 2008, afirma que “o juiz, para preservar a sua independência e imparcialidade, rejeita a participação em actividades políticas ou administrativas que impliquem subordinação a outros órgãos de soberania ou o estabelecimento de relações de confiança política. Se, ainda assim, aceitar exercer tais actividades, é adequado que cesse ou suspenda voluntariamente a qualidade de juiz nos termos estatutariamente previstos”.
O que está em causa não é, portanto, uma avaliação subjectiva sobre as qualidades de independência nem sobre as boas intenções dos juízes que exercem cargos no governo e dos políticos que os nomeiam. Nem, tão pouco, o desaconselhamento ético dessas ligações resulta do confronto maniqueísta entre uma suposta bondade da função judicial e uma maldade intrínseca da actividade política. Do que se trata é da protecção objectiva do valor da confiança, que é essencial na Justiça. Qualquer observador médio, razoável e bem informado vê que a percepção social sobre a independência judicial sai inevitavelmente abalada quando juízes circulam entre funções judiciais e funções governativas, convivendo, em diferentes qualidades, muitas vezes incompatíveis, com pessoas, interesses e políticas que podem ter sido ou vir a ser objecto de apreciação pelos tribunais.
Sérgio Moro foi livre de ir para ministro da Justiça mas já não poderá regressar às funções de juiz porque a lei brasileira não permite. A lei portuguesa é bem mais permissiva. A autorização para o exercício de funções no governo e para o regresso à função de juiz pertence ao Conselho Superior da Magistratura, mas não passa de uma mera formalidade automática. Mesmo que não se fosse a ponto de proibir o regresso à função, como acontece no Brasil e noutros países, penso que ao menos a lei podia acolher o princípio já consagrado no Compromisso Ético, mas não vinculativo, de obrigar ao desligamento temporário da qualidade de juiz, com uma licença sem vencimento ou instrumento equivalente.