A essência de Sophia através de Manuel Mozos
Depois de ver o documentário de Manuel Mozos Sophia, na primeira pessoa resta-nos voltar aos seus lugares e à sua obra para que haja mais manhãs, tardes, e noites com ela. Sempre.
A saudade é lei na vida e esse foi o sentimento que senti ao longo dos 56 minutos do documentário, Sophia, na primeira pessoa (esta terça-feira, na RTP). Saudades dos lugares como a Travessa das Mónicas e daquele jardim que era um dos seus refúgios, da sua casa de Lagos, da minha própria infância e adolescência no tempo com ela, e da leveza da sua voz carregada de palavras sem adornos desnecessários. Como a sua poesia, sempre.
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A saudade é lei na vida e esse foi o sentimento que senti ao longo dos 56 minutos do documentário, Sophia, na primeira pessoa (esta terça-feira, na RTP). Saudades dos lugares como a Travessa das Mónicas e daquele jardim que era um dos seus refúgios, da sua casa de Lagos, da minha própria infância e adolescência no tempo com ela, e da leveza da sua voz carregada de palavras sem adornos desnecessários. Como a sua poesia, sempre.
Esse é também o grande ato deste documentário. Em pouco tempo, e com tanto material mais ou menos público, capta-se a essência e o essencial de uma pessoa tão complexa como ela. Tudo o que fosse para lá, maçá-la-ia certamente. Entre as sombras da sua própria solidão, tão definidoras da própria génese da sua obra literária, ou as inquietações sobre o país e a claridade na vida que soube encher, sobressai a Sophia que todos os que a conheceram reconhecem de forma plena ao longo deste documentário. Por isso, e como dizia alguém, “parece que voltámos a passar uma tarde com ela.” E assim foi. Na primeira pessoa, como tão bem decidiu o realizador.
De alguns inéditos tornados públicos, destaco quando, numa entrevista, revelou ainda na adolescência à professora do liceu que fez troça dela durante as férias. Não aguentava estar cara a cara com ela e esconder-lhe isso muito mais tempo. Ela era assim. Desarmava pela ironia da transparência do seu próprio caráter. Nesta hora limpa da verdade é preciso dizer a verdade toda.
Entre a passagem das várias fases de vida, e também através do registo fotográfico, a determinada altura assistimos a uma incursão rítmica na adaptação musical por Francisco Fanhais do poema Porque, dedicado ao seu marido e meu avô, Francisco Sousa Tavares. Essencial.
Porque os outros se mascaram, mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão
Porque os outros têm medo, mas tu não
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam, mas tu não.
Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis, mas tu não.
Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam, mas tu não.
O desconsolo com a ausência do país durante anos do seu grande amigo Jorge de Sena é confessado mais adiante. Inquietava-a. Ao inclui-lo no documentário, Mozos acaba por dar destaque a outro vulto literário. Tão relevante é este facto num ano em que também se celebra o seu centenário e em que muitas vezes isso não está tão presente.
Homenagear Sophia é também celebrar Sena, e o realizador soube salientar exatamente isso, subtilmente. Como penso que ela gostaria.
O meu interior é uma atenção voltada para fora
O meu viver escuta
A frase que de coisa em coisa silabada
Grava no espaço e no tempo a sua escrita
Tudo o resto fica para quem verá este Sophia, na primeira pessoa na RTP. A peça que faltava pelo muito que é no tempo necessário. Como a sua poesia.
A nós, e depois de o ver, resta-nos voltar aos lugares e à sua obra para que haja mais manhãs, tardes, e noites com ela. Sempre.
O autor escreve seguindo o novo Acordo Ortográfico