Sobre a conceção republicana de liberdade
Como Francisco Assis, também eu defendo que Joacine Katar Moreira está correta na sua análise e que uma das diferenças centrais entre o Livre e partidos como a Iniciativa Liberal está precisamente na conceção de liberdade pela qual cada um se rege.
Numa entrevista dada recentemente a este jornal, Joacine Katar Moreira, minha camarada e deputada à Assembleia da República, afirmava que “não existe liberdade sem igualdade”. Esta resposta surgia no seguimento de uma pergunta sobre as diferenças entre o Livre e a Iniciativa Liberal, um outro partido recentemente entrado na AR e que também recorre ao conceito de liberdade no seu nome. Como bem nota Francisco Assis também nas páginas do PÚBLICO, era expectável que surgissem críticas a esta afirmação, mais não seja pelos exemplos reais durante o século XX onde a liberdade foi sacrificada em nome da igualdade. Mas, como Francisco Assis, também eu defendo que Katar Moreira está correta na sua análise e que uma das diferenças centrais entre o Livre e partidos como a IL está precisamente na conceção de liberdade pela qual cada um se rege. No caso do Livre, a conceção republicana de liberdade é central na sua ação.
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Numa entrevista dada recentemente a este jornal, Joacine Katar Moreira, minha camarada e deputada à Assembleia da República, afirmava que “não existe liberdade sem igualdade”. Esta resposta surgia no seguimento de uma pergunta sobre as diferenças entre o Livre e a Iniciativa Liberal, um outro partido recentemente entrado na AR e que também recorre ao conceito de liberdade no seu nome. Como bem nota Francisco Assis também nas páginas do PÚBLICO, era expectável que surgissem críticas a esta afirmação, mais não seja pelos exemplos reais durante o século XX onde a liberdade foi sacrificada em nome da igualdade. Mas, como Francisco Assis, também eu defendo que Katar Moreira está correta na sua análise e que uma das diferenças centrais entre o Livre e partidos como a IL está precisamente na conceção de liberdade pela qual cada um se rege. No caso do Livre, a conceção republicana de liberdade é central na sua ação.
Nascido na Roma e na Grécia da Antiguidade, o republicanismo enquanto teoria política teve várias formas e expressões ao longo dos séculos. Em comum, todas estas expressões partilham a defesa do bem comum e a oposição a todas as formas de corrupção, a defesa da participação cívica, a promoção da cidadania através das virtudes cívicas, a defesa do Estado de direito e a conceção de liberdade como não-dominação.
Em que consiste então esta conceção de liberdade com mais de dois mil anos? O mais fácil é talvez situá-la em comparação com duas grandes conceções de liberdade apresentadas por Isaiah Berlin no seu famoso ensaio: a positiva e a negativa. A primeira forma de liberdade, rejeitada por Berlin pelos seus riscos de autoritarismo, corresponde à liberdade como auto-domínio, em que o indivíduo faz aquilo que realmente quer. A segunda é definida como negativa pois, de acordo com esta conceção, ser livre é não sofrer interferências. A liberdade positiva seria assim a liberdade para, enquanto a liberdade negativa seria a liberdade de. A conceção republicana de liberdade como não-dominação aparece assim como uma terceira via que considera que ser livre para implica que se seja livre de e, ao mesmo tempo, só se é livre de quando também se é livre para.
Para a conceção negativa de liberdade, qualquer interferência corresponde a uma redução da liberdade individual. Por seu lado, os republicanos não só aceitam que as interferências podem não reduzir a liberdade como também argumentam que, mesmo sem a existência de interferências, um indivíduo pode não ser livre. O exemplo clássico é o de uma pessoa escravizada e o seu mestre em que este, por uma qualquer razão, nunca recorre a qualquer castigo físico ao longo dos anos. De acordo com a conceção negativa de liberdade, esta pessoa escravizada seria livre pois não sofre qualquer tipo de interferência; para a conceção republicana, no entanto, esta pessoa não é livre pois ambos os agentes – dominador e dominado – sabem que há uma diferença de poder entre ambos e que um deles pode, de modo arbitrário, interferir com o outro como e quando o desejar.
De um modo simples e extremamente claro, Philip Pettit, o filósofo responsável pelo renovado interesse que o republicanismo tem tido nas últimas décadas, afirma que só é verdadeiramente livre quem passa no “teste do olhar”. Diz Pettit que apenas quem consegue olhar nos olhos outra pessoa sem qualquer necessidade de deferência é verdadeiramente livre. E é por isso que a igualdade, mesmo que não absoluta ou entendida como um fim em si mesmo, é tão importante: é que apenas entre iguais nos poderemos olhar nos olhos. Sendo verdade que o republicanismo clássico se referia sobretudo à igualdade em termos políticos, esta tem de ser hoje alargada a outras esferas, desde logo a económica e a dos serviços básicos como habitação, saúde e educação.
Aqueles que recorrem à conceção negativa de liberdade consideram então todas as interferências como limitadoras da liberdade. Não é por acaso que partidos como a Iniciativa Liberal insistem na mensagem de que os impostos são um ataque à liberdade. Ora, como espero que seja claro chegados a este ponto, isto só pode ser considerado verdade por quem se guia por esta conceção de liberdade. Para um republicano, não só os impostos não são um ataque à liberdade como, pelo contrário, pela distribuição que deles será feita são uma das ferramentas que garante aos cidadãos a liberdade como não-dominação.
Da revolução francesa os republicanos herdaram o lema pelo qual ainda hoje se podem guiar: liberdade, igualdade e fraternidade. Quanto à fraternidade, infelizmente o elemento muitas vezes esquecido desta trilogia, e a sua importância nos dias que correm, voltarei num outro texto. Neste, espero ter contribuído para um debate cada vez mais premente e que vai ao âmago daquilo que deve ser a política pública: liberdade, sim, mas qual?
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico