A série que quer ser a adaptação justa de Mundos Paralelos...

...e talvez a sucessora de A Guerra dos Tronos. Depois de um filme que diluía os temas religiosos e políticos dos livros de Philip Pullman, HBO e BBC investiram milhões na nova série que se estreia hoje em Portugal. Os animais falam, a série faz perguntas.

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O premiado escritor britânico Phillip Pullman não gosta de definir idades para a sua obra mais famosa, a trilogia Mundos Paralelos (His Dark Materials). A história de Lyra, Azriel e da Sra. Coulter é entendida como literatura fantástica juvenil, mas os seus temas são bem maduros: o fanatismo religioso controla o mundo sob a forma do Magistério e, no meio de ursos polares falantes, do crescimento de uma menina e de dirigíveis steampunk, luta-se pela ciência e pelo livre arbítrio. Na nova série da BBC/HBO que se estreia esta segunda-feira em Portugal, James McAvoy, Ruth Wilson e Lin-Manuel Miranda rodeiam a jovem actriz Dafne Keen e fazem perguntas ao ecrã.

É que esta é uma das séries candidatas ao título de sucessora ao fenómeno A Guerra dos Tronos, que por seu turno também nasce de uma saga literária de fantasia de grande divulgação com um culto à sua volta - Mundos Paralelos é um dos títulos que, desde a Primavera, são mencionados para provar que há um efeito A Guerra dos Tronos na televisão e que a aposta (financeira) na fantasia veio para ficar. E há que lembrar que a obra de Pullman já foi adaptada - em 2007, o filme A Bússola Dourada (produzido pela mesma New Line Cinema que agora produz Mundos Paralelos) serviu ao mundo esta história com o star power de Nicole Kidman e Daniel Craig nos principais papéis. Estavam previstos mais dois filmes, mas os fracos resultados de A Bússola Dourada deixaram-nos pelo caminho.

O presidente da HBO para a programação, Casey Bloys, quis responder à primeira pergunta quase sem ela surgir: “Vamos pôr fim a isto: não há uma ‘próxima Guerra dos Tronos’”, disse ao New York Times. Há uma história que apela a todas as idades e que, enquanto os efeitos visuais encantam com o detalhe dos génios (“daemons” no original), os animais que acompanham cada humano e são a manifestação do seu espírito, fala das grandes questões da civilização. E Mundos Paralelos responde com esse ingrediente à segunda questão por formular: ao contrário da versão aguada que Chris Weitz (American Pie) realizou há mais de uma década, enfrenta os temas religiosos que motivaram a ira do Vaticano contra o escritor ateu que assinou também Jesus, o Bom, e Cristo, o Patife (2011).

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“Quando Philip escreve sobre o Magistério, não está a atacar a igreja, está a atacar o sistema”, interpreta Dafne Keen, cujos dotes de actriz tornaram a Lyra de cabelos loiros dos livros numa menina morena de cabelo curto na série. Mundos Paralelos, apesar de dividir a crítica, acrescenta até alguns pontos contemporâneos à história de Pullman.

“Não acredita que o pensamento original deve ser protegido?”, pergunta o Mestre da ficcional Jordan College, num dos quatro episódios que o PÚBLICO já viu, à Sra. Coulter, que trabalha para o Magistério. “A protecção académica [que salvaguarda alguma liberdade de pensamento nas universidades da série] é só mais uma forma de proteger o privilégio decadente. Homens velhos cansados a falar de uma forma velha e cansada sobre coisas velhas e cansadas”, responde a vilã.

"É importante termos histórias sobre jovens raparigas"

Philip Pullman começou a editar Mundos Paralelos em 1995 - em Portugal, lançados pela Editorial Presença, os livros têm os títulos Os Reinos do Norte, A Torre dos Anjos e O Telescópio de Âmbar. Em todo o mundo já foram vendidos 18 milhões de exemplares e a obra está traduzida em dezenas de línguas. Lyra Belacqua, interpretada pela actriz hispano-britânica Dafne Keen descoberta no filme Logan, é então a figura central. Cresceu como órfã ao cuidado da Jordan College (a versão do livro da Universidade de Oxford) e conhece Lord Asriel (McAvoy) como seu tio. O seu génio é o pequeno Pantalaimon e a sua forma ainda não se fixou (só acontece à chegada à adolescência). Os génios falam, aconselham os seus congéneres humanos e dão jeito para explicar partes da história aos espectadores.

A actriz leu os livros depois de ter sido escolhida para o papel. “Assim que os li, soube que esta era uma boa mensagem para o mundo e é importante termos histórias sobre jovens raparigas, porque não há muitas”, disse Keen ao diário britânico The Guardian. Na antestreia da série, o criador da versão televisiva, Jack Thorne, comparou Lyra a Greta Thunberg.

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Numa altura em que andam a desaparecer crianças, a intempestiva Lyra conhece a poderosa e bela Sra. Coulter (Wilson) e o seu macaco dourado. Os seus caminhos cruzar-se-ão com mais figuras fantásticas, luzes de nafta, mitologia nórdica, uma espécie de bússola para a verdade, o “aletiómetro” que dá origem à referência “bússola dourada”, e povos tão diferentes quanto os Gyptians ou o aeronauta texano Lee Scoresby (Miranda).

Em fundo, os membros do Magistério, figuras que tendem a ter répteis e insectos como génio e que rasgam páginas de livros preciosos e perseguem nómadas. Os dogmas religiosos e o fascismo são temas para despontar na primeira temporada e que, seguindo a ordem dos livros, se aprofundarão na segunda temporada, já a ser filmada, e na terceira, em escrita e pré-produção.

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"Vivo nos sonhos dele"

Subjacente a tudo isto está só mais uma questão - televisiva, e permeia a maior parte das críticas aos primeiros quatro episódios desta série de oito: o que faz uma boa adaptação e o que é que justifica a transição de uma história para o formato série? Mundos Paralelos tem os meios, tem o elenco, tem a história e também tem a bênção de Pullman. Tem Tom Hooper (A Rapariga Dinamarquesa, O Discurso do Rei) atrás das câmaras e Jack Thorne (Harry Potter and the Cursed Child) nos argumentos.

A Bússola Dourada não tinha tempo para explorar o complexo e rico mundo criado por Pullman, que continua a trabalhar na história de Lyra com uma nova trilogia, O Livro do Pó, dos quais dois livros já estão editados (em Portugal, novamente pela Presença). Mundos Paralelos tem esse tempo, tem elementos novos - “Ele contou-nos histórias inéditas que ocorrem nos hiatos entre os capítulos”, disse Thorne ao diário inglês The Independent - e mistura até, com conselhos de Pullman, conceitos d'O Livro do Pó. A série tem também uma equipa grata e rendida a Pullman. “Vivo nos sonhos dele”, diz Lin-Manuel Miranda ao New York Times. “É um sítio bom onde viver.”

Porém, não há uma só resposta à pergunta “o que traz esta adaptação?” à oferta avassaladora de televisão actual.

Robert Lloyd, no Los Angeles Times, não tem dúvidas: esta é uma série “excelente” que “capta A Bússola Dourada da forma certa”. Para a revista Time, “esta é uma história maravilhosa, representada com a vivacidade - e o orçamento - que os livros de Pullman merecem”. A BBC e a HBO não revelam o orçamento, mas o Telegraph escrevia há semanas que esta é a série mais cara de sempre a ser exibida pela televisão pública britânica.

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Marisa Coulter (Ruth Wilson) HBO

Mais intrigadas estão Caroline Framke, na Variety, e Kathryn Van Arendonk, no site Vulture. “Mesmo com um texto tão detalhado de onde beber, há uma estranha letargia na série”, diz Framke, e mesmo os aspectos políticos e misteriosos de Mundos Paralelos tornaram-se para a crítica “algo mais genérico”. Van Arendonk encontra “beleza e desilusão” nos primeiros episódios e talvez resuma melhor esta nova aventura da HBO Portugal que se prolongará por pelo menos mais duas temporadas.

Mundos Paralelos é uma adaptação lindíssima a que falta um propósito”, titula, para rematar que nesta “mistura de imagens despudoradamente deslumbrantes, várias actuações fortes” falta confiança. “O seu propósito, à falta de mais, é o puro espectáculo do universo de Philip Pullman.”