Bercow: o mais amado e odiado dos speakers sai de cena à boleia das eleições
Presidente da Câmara dos Comuns abandona hoje o cargo, ao fim de dez anos. Carismático, inovador, sarcástico e (muito) polémico, acumulou inimigos no seu partido e amigos na oposição, e foi figura-chave no controlo da agenda parlamentar do “Brexit” pelos deputados.
Empurrado o “Brexit” para o final de Janeiro e agendadas eleições para meados de Dezembro, o Reino Unido prepara-se para encerrar mais um capítulo político da sua duradoura democracia, com uma certeza: o vigor, a entoação e o entusiasmo com que o moderador dos trabalhos da Câmara dos Comuns gritará “order” e passará palavra ao deputado seguinte, por cima do barulho, daqui para a frente, nunca mais serão iguais. John Bercow, o divertido, bem-falante e carismático presidente da câmara baixa de Westminster, preside esta quinta-feira à sua última sessão plenária, abandonando o cargo ao fim de dez anos e deixando para trás um Parlamento muito diferente daquele que encontrou em 2009.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Empurrado o “Brexit” para o final de Janeiro e agendadas eleições para meados de Dezembro, o Reino Unido prepara-se para encerrar mais um capítulo político da sua duradoura democracia, com uma certeza: o vigor, a entoação e o entusiasmo com que o moderador dos trabalhos da Câmara dos Comuns gritará “order” e passará palavra ao deputado seguinte, por cima do barulho, daqui para a frente, nunca mais serão iguais. John Bercow, o divertido, bem-falante e carismático presidente da câmara baixa de Westminster, preside esta quinta-feira à sua última sessão plenária, abandonando o cargo ao fim de dez anos e deixando para trás um Parlamento muito diferente daquele que encontrou em 2009.
Engane-se, porém, quem achar que a substituição do speaker de gravatas extravagantes e voz rouca será apenas uma mudança de estilo. À boleia do atribulado processo de saída da União Europeia, Bercow liderou uma verdadeira revolução institucional na Câmara dos Comuns, transferindo protagonismo dos ministros para os deputados e do Governo para a oposição, e reagindo aos desafios inéditos criados pela novela do “Brexit” com interpretações livres e originais das regras, convenções e tradições do velhinho regime constitucional britânico.
Em nome do direito dos deputados ao escrutínio do trabalho do Governo, o speaker teve diversos braços-de-ferro com David Cameron, Theresa May, Boris Johnson e muitos outros dirigentes do seu próprio partido – o Partido Conservador.
Bercow aceitou mais perguntas e debates urgentes que qualquer um dos seus antecessores, acabou com o limite de tempo de 30 minutos das sessões de perguntas ao primeiro-ministro, levou a votos emendas a propostas de lei embaraçosas para o executivo, impediu May e Johnson de tentarem votar as mesmas moções mais do que uma vez e permitiu, num tempo de enorme fragmentação política, que os opositores ao Governo conseguissem controlar e definir, de facto, a agenda parlamentar e legislativa – uma excentricidade na ordem constitucional de Westminster.
“[Bercow] converteu-se numa raridade: um speaker historicamente marcante, que tomou decisões que alteraram genuinamente o rumo dos acontecimentos, e que mudaram dramaticamente a imagem pública do Parlamento”, escreveu sobre ele o jornalista da BBC, Mark D’Arcy, quando há cerca de um mês Bercow anunciou que iria largar a Chair a 31 de Outubro.
Dono de um cargo tradicionalmente mais vocacionado para a coordenação do que para a orientação dos trabalhos na câmara, as inovações do seu presidente e o estilo informal e jocoso como gostava de repreender os deputados, não lhe valeram, como se imagina, o aplauso e aquiescência de toda a classe política. Bem pelo contrário.
“Originalmente, [Bercow] era um conservador de direita, mas as suas convicções transferiram-se para a esquerda e o seu principal apoio veio do Labour, para desespero da sua própria tribo”, sublinha o Guardian, num editorial. “Muitos tories nunca lhe perdoaram, alguns detestam-no. Certos motivos são compreensíveis. O Sr. Bercow é constantemente paternalista e gosta demasiado de repreender os deputados com intervenções sofisticadas e palavrosas. Já foi denunciado pelo seu staff por mau comportamento e acusado de fazer bullying (que nega) na Câmara dos Comuns”.
Amigo e inimigo
Onde o Partido Trabalhista e restantes forças da oposição viram um esforço louvável de Bercow para dar aos deputados a possibilidade de avaliarem e responsabilizarem um Governo conservador muito criticado por querer fugir ao escrutínio, no caminho para o “Brexit”, o Partido Conservador identificou uma estratégia clara do speaker de condicionar o debate político em nome suas próprias convicções políticas.
“Para os remainers, Bercow tornou-se uma figura espiritual. Para os leavers, transformou-se num inimigo”, resume o site noticioso PoliticsHome.
John Bercow é um remainer e numa fase da vida política britânica em que o posicionamento em relação ao “Brexit” parece determinar em que trincheira ideológica cabem os seus dirigentes, as suas decisões mais controversas foram entendidas pelos brexiteers como uma forma de, também ele, através do abuso das suas competências, contribuir para tentar frustrar o divórcio britânico com a UE.
“Speaker do diabo”, chegou a chamar-lhe o tablóide pró-“Brexit” The Sun. Bercow procura sempre pôr “o seu preconceito anti-‘Brexit’ à frente do interesse nacional”, escreveu dele o também eurocéptico Daily Mail. “Um polarizador sem precedentes que conseguiu ser o parlamentar mais importante do Reino Unido moderno”, caracterizou-o, por sua vez, o remainer Guardian.
“Sentou-se nessa cadeira e actuou como um árbitro impiedoso para julgar sobre os pontos mais específicos do procedimento parlamentar, com a sua imagem de marca de Tony Montana desconfiado”, atirou-lhe, sarcasticamente, Boris Johnson, na hora das despedidas, esta quarta-feira, comparando Bercow ao personagem do filme Scarface (1983), interpretado por Al Pacino. “Foi comentador, submeteu as suas próprias opiniões (…), umas vezes amargo, outras vezes simpático, e outras vezes como interveniente por direito próprio”.
Quis o destino – ou a falta de maiorias e de entendimento no Parlamento para um outro caminho – que o “Brexit” não se tenha cumprido, afinal, no último dia de trabalho de Bercow na Câmara dos Comuns, a 31 de Outubro. O adiamento do divórcio para o final de Janeiro de 2020 e a marcação de eleições para 12 de Dezembro puseram fim a um longo mandato de dez anos que já tinha prometido há meses à família.
Para além de largar o cargo, Bercow não vai sequer concorrer ao seu lugar de deputado nas próximas eleições. O seu sucessor será escolhido numa votação na próxima segunda-feira, dois dias antes da dissolução da Câmara dos Comuns – o trabalhista Lindsay Hoyle, actual deputy speaker, é o grande favorito ao cargo.
Fora do âmbito do “Brexit”, John Bercow destacou-se pela positiva com a introdução de uma creche nas instalações de Westminster e com a melhoria dos acessos ao palácio para pessoas com deficiência. Ofereceu a sua voz e promoveu iniciativas em defesa da causa LGBT, da família, da integração social e dos direitos humanos.
“O senhor fez tanto para modernizar a Câmara dos Comuns e a nossa democracia é a mais forte por causa da forma como o fez”, agradeceu esta quarta-feira Jeremy Corbyn, líder do Labour. “E deu a cara pelo Parlamento quando era mesmo necessário dar a cara. Obrigado, Mr. Speaker”.