Porto, sociedade anónima (S.A.)
A presença constante de marcas coladas a instituições ou a equipamentos construídos pelo Estado é, hoje, uma prática generalizada. A elevação do Porto à categoria de marca (”Porto Ponto”) é bastante sintomática desse estado de coisas.
A notícia da alteração de nome do Pavilhão Rosa Mota (agora denominado «Super Bock Arena – Pavilhão Rosa Mota») nada traz de significativamente novo a não ser tornar evidente a crescente lógica de inter-dependência entre Estado e privados. Das universidades às câmaras municipais, passando por centros de investigação e museus, a lógica é sempre a mesma: não há dinheiro e, por isso, há que fazer «parcerias» com empresas, patrocinadores, mecenas. Embora esta seja uma lógica há muito presente em determinados sectores, noutros a dependência de financiamento privado é cada vez mais constrangedora. Foi um golpe de sorte a Fundação de Serralves ter sido criada há 30 anos senão chamar-se-ia, hoje, muito provavelmente, Fundação Super Bock Serralves. Por outro lado, há uns anos, em plena crise, na Casa da Música (instituição construída com financiamento público, mas com gestão privada) os funcionários de sala apareceram vestidos com umas t-shirts a dizer BPI. Ainda perguntei se a Casa da Música estava a prestar serviços bancários, mas não me souberam responder. Um episódio que teve, pelo menos, a virtude de mostrar quem estava, de facto, a cargo da instituição.
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A notícia da alteração de nome do Pavilhão Rosa Mota (agora denominado «Super Bock Arena – Pavilhão Rosa Mota») nada traz de significativamente novo a não ser tornar evidente a crescente lógica de inter-dependência entre Estado e privados. Das universidades às câmaras municipais, passando por centros de investigação e museus, a lógica é sempre a mesma: não há dinheiro e, por isso, há que fazer «parcerias» com empresas, patrocinadores, mecenas. Embora esta seja uma lógica há muito presente em determinados sectores, noutros a dependência de financiamento privado é cada vez mais constrangedora. Foi um golpe de sorte a Fundação de Serralves ter sido criada há 30 anos senão chamar-se-ia, hoje, muito provavelmente, Fundação Super Bock Serralves. Por outro lado, há uns anos, em plena crise, na Casa da Música (instituição construída com financiamento público, mas com gestão privada) os funcionários de sala apareceram vestidos com umas t-shirts a dizer BPI. Ainda perguntei se a Casa da Música estava a prestar serviços bancários, mas não me souberam responder. Um episódio que teve, pelo menos, a virtude de mostrar quem estava, de facto, a cargo da instituição.
A presença constante e exibicionista de marcas coladas a instituições ou a equipamentos públicos é, hoje, uma prática generalizada. Esta ocupação absoluta da esfera pública pelas empresas mostra como a publicidade, o marketing e o branding, são operadores constitutivos essenciais dos espaços e tempos da nossa vida quotidiana e social. Mas também mostra como os pressupostos e processos da gestão empresarial se tornaram modelo para sectores cujos objectivos dificilmente poderão ser equiparáveis. A elevação do Porto à categoria de marca («Porto Ponto») é bastante sintomática desse estado de coisas.
Ao contrário do que se diz, o neoliberalismo não retira o Estado da economia, mas põe o Estado a funcionar em nome da economia, isto é, em nome dos privados (geralmente e ironicamente denominado como «interesse público»). No neoliberalismo o Estado é máximo na economia (intensificando toda uma rede de relações e dependências entre poder legislativo, executivo, investimento) e mínimo nos serviços públicos e nos mecanismos de redistribuição que presta socialmente (que passaram, aliás, a ser função de negócio dos privados). A expressão jurídica sociedade anónima é, de facto, a melhor fórmula para definir o horizonte político de um modelo onde, como dizia Margaret Thatcher, não existe sociedade, apenas indivíduos.
O pavilhão Rosa Mota é mais um capítulo deste processo: o esvaziamento progressivo das competências públicas da autarquia e a privatização de um equipamento colectivo (através da sua concessão por 20 anos). Uma concessão com um programa de espectáculos e entretenimento que intensifica, para além disso, uma política de gestão de cidade como parque temático, numa altura em que se deveria fazer precisamente o contrário: isto é, fomentar políticas de habitação e gestão do espaço urbano capazes de assegurar um acesso à habitação e à cidade a todos e não apenas a espectadores, turistas e classes altas. E embora a alteração do nome seja sintomática da força exploradora do branding, que nem os símbolos quase sagrados do imaginário portuense parece poupar, aquilo que, na verdade, está em causa é a sua privatização.
Não sabemos qual a percentagem de financiamento que coube à Super Bock na reabilitação do Pavilhão, mas só podemos imaginar que seja uma parte considerável para justificar a mudança de nome e o downgrading da atleta portuense. Quando a câmara justifica que não tem «preconceitos quanto à existência de patrocinadores» e que até são estes que «ajudam à concretização do interesse público não onerando os impostos dos cidadãos», percebe-se bem não só a indeterminação fantasmagórica do conceito de «interesse público», mas como estamos diante um terreno que está à partida minado. Porque se devemos perguntar porque é que a Câmara não tem meios para reabilitar o edifício, também devemos perguntar como é que a Super Bock tem condições financeiras para ser mecenas de tantas instituições e eventos. A questão, contudo, é que a vida social e colectiva passa crescentemente pelas empresas na forma distorcida da filantropia e do mecenato: e estas decidem – na relação oferta-procura-lucro – que espectáculos vamos ver, se aquela faculdade vai ter ou não uma biblioteca, se o museu pode ou não expor certas obras de arte. Há uma privatização da vida social que é, simultaneamente, a privatização de uma política pública cultural que, para todos os efeitos, dificilmente existiu em Portugal: uma política cultural feita não de espectáculos grandiosos, mas de uma formação politicamente activa, criticamente atenta e socialmente aberta. Em alguns sítios, isto ainda é considerado como prerrogativa essencial de qualquer democracia.
Não deixa de ser curioso, no entanto, que tudo isto seja sobre um lugar com uma história tão paradigmática: um edifício que foi Palácio de Cristal (1865), construído para albergar as grandes feiras da indústria mundial; integralmente demolido para se tornar um novíssimo Pavilhão dos Desportos (1951) – que corresponde ao edíficio existente, projecto do arquitecto José Carlos Loureiro; renomeado Pavilhão Rosa Mota (1991); e agora reabilitado e renomeado Super Bock Arena (2019), para albergar espectáculos e congressos. É como se cada uma destas renomeações/transformações correspondesse sempre a um salto em direcção a um novo momento histórico: o industrioso cosmopolitismo do liberalismo portuense, a retórica modernizante do Estado Novo no pós-guerra, os sucessos metafóricos da democracia portuguesa sublimados em Rosa Mota, e, por fim, o poder financeiro da indústria do entretenimento e das empresas na era do neoliberalismo e do fim do Estado social (até o nome, arena, é desse ponto de vista sugestivo). Talvez, por isso, a alteração de nome do Pavilhão Rosa Mota seja, afinal, a assinatura que marca, tão-só, o fim de (mais) uma época.