A DGS e a dispensa da evidência científica
Embora a experiência pessoal e profissional dos especialistas seja certamente válida em determinados contextos, esperar-se-ia que um organismo com as responsabilidades da DGS não emitisse um conjunto de opiniões infundadas do ponto de vista científico.
A Direcção-Geral da Saúde (DGS) publicou no passado dia 16 de Outubro um manual de “Alimentação Saudável dos 0 aos 6 anos – Linhas de Orientação para Profissionais e Educadores”. O documento é elaborado por uma equipa multidisciplinar e pretende agregar informação sobre alimentação para os profissionais de saúde e educação, pais e educadores, de forma a que estes “tomem decisões mais informadas”. A premissa é boa, constituindo-se, aliás, como um dos objectivos da literacia em saúde: a disponibilização de informação que permita tomar decisões informadas em saúde. No entanto, o documento começa com uma nota introdutória onde se lê, desde logo, que este manual mistura “a procura pela evidência científica mais recente com a experiência pessoal e profissional dos envolvidos”. Embora a experiência pessoal e profissional dos especialistas seja certamente válida em determinados contextos, esperar-se-ia que um organismo com as responsabilidades da DGS não emitisse um conjunto de opiniões infundadas do ponto de vista científico. Teria sido melhor que reunisse a evidência científica disponível no momento, deixando os juízos de valor para o leitor, que, a partir dali, teria ferramentas para tomar decisões informadas em relação à alimentação da(s) criança(s) a seu cargo.
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A Direcção-Geral da Saúde (DGS) publicou no passado dia 16 de Outubro um manual de “Alimentação Saudável dos 0 aos 6 anos – Linhas de Orientação para Profissionais e Educadores”. O documento é elaborado por uma equipa multidisciplinar e pretende agregar informação sobre alimentação para os profissionais de saúde e educação, pais e educadores, de forma a que estes “tomem decisões mais informadas”. A premissa é boa, constituindo-se, aliás, como um dos objectivos da literacia em saúde: a disponibilização de informação que permita tomar decisões informadas em saúde. No entanto, o documento começa com uma nota introdutória onde se lê, desde logo, que este manual mistura “a procura pela evidência científica mais recente com a experiência pessoal e profissional dos envolvidos”. Embora a experiência pessoal e profissional dos especialistas seja certamente válida em determinados contextos, esperar-se-ia que um organismo com as responsabilidades da DGS não emitisse um conjunto de opiniões infundadas do ponto de vista científico. Teria sido melhor que reunisse a evidência científica disponível no momento, deixando os juízos de valor para o leitor, que, a partir dali, teria ferramentas para tomar decisões informadas em relação à alimentação da(s) criança(s) a seu cargo.
Vários aspectos podem e devem ser melhorados neste manual, nomeadamente as afirmações desprovidas de evidência científica e as frequentes incongruências ao longo do documento. É dedicado muito espaço à “papa”, que é, a par da sopa, um “alimento que frequentemente é considerado para a iniciação da diversificação alimentar”. Faz-se a distinção entre as papas industriais, “biológicas” (como as da marca Holle) e caseiras. Este ponto é pouco fundamentado do ponto de vista científico, citando-se apenas duas referências bibliográficas que correspondem a teses de licenciatura. Apesar de válidas, estas referências não passam por um processo de revisão por pares em que se atesta a sua relevância científica – ao contrário dos artigos científicos. Falta aqui o contraditório e a evidência científica que nos demonstre que a origem das papas (industrial ou caseira) determina o seu valor nutricional. Faz-se a apologia das papas industriais, nomeadamente pelo enriquecimento com vitaminas e minerais, por oposição às papas “biológicas”, que não são enriquecidas, e às papas caseiras, nas quais não se consegue quantificar os nutrientes presentes.
Importaria fazer uma reflexão mais aprofundada sobre este tema, nomeadamente pela insegurança que pode gerar nos cuidadores que optem por oferecer estas últimas. Para além disto, as últimas recomendações europeias (ESPHGAN, 2017) referem que não há evidência científica de que atrasar a introdução de alimentos potencialmente alergénios para lá dos quatro meses reduza o risco de alergia, mesmo em crianças com historial de atopia. Ainda assim, a DGS aconselha o atraso na introdução de alguns alimentos, como o iogurte e o ovo (8-9 meses), ou os frutos secos (9 meses). É também defendido que devem ser respeitados os sinais de autorregulação do apetite da criança, mas, por outro lado, não se deve permitir a repetição do prato. O leitor fica, porventura, um pouco confuso com tanta informação contraditória.
Apesar de tudo, é de louvar o esforço da DGS em uniformizar e reunir num único documento uma série de recomendações de alimentação para os primeiros anos de vida, uma vez que se sabe que estes são fundamentais para o desenvolvimento da criança e determinantes na prevenção da doença no adulto. Há vários aspectos positivos no documento, nomeadamente o reconhecimento do papel da escola na promoção de hábitos saudáveis, a preocupação com a actividade física aliada à alimentação saudável, ou a atenção com os ecrãs nos primeiros anos de vida. Há muito que fazia falta um guia dirigido aos berçários e creches, e esperemos que este seja o impulso de que precisávamos para trilhar o caminho nestas valências.