Isaac e Ary falam sobre ser “trans” para “criar uma realidade mais humana”

Ary Zara Pinto e Isaac dos Santos, duas pessoas transgénero, lançaram o T Guys Cuddle Too, um canal no YouTube onde exploram a identidade de género. Querem “contribuir para uma realidade mais humana”, dentro e fora da Internet.

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Ary Pinto e Isaac dos Santos criaram o canal de YouTube T Guys Cuddle Too Pedro Fazeres

Ary faz círculos com um marcador preto no peito de Isaac, que tenta conter o riso. Depois, olha para a câmara e diz: “Caso queiram fazer a mastectomia, aqui ficam alguns dos nossos conselhos.” Ary Zara Pinto e Isaac dos Santos, duas pessoas transgénero, lançaram há um mês o T Guys Cuddle Too, um canal no YouTube onde falam sobre identidade e transição de género a partir de uma casa em Lisboa – quer para pessoas que começam a entrar no mundo das hormonas, quer para quem nunca questionou o sexo que lhe foi atribuído à nascença.

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Ary faz círculos com um marcador preto no peito de Isaac, que tenta conter o riso. Depois, olha para a câmara e diz: “Caso queiram fazer a mastectomia, aqui ficam alguns dos nossos conselhos.” Ary Zara Pinto e Isaac dos Santos, duas pessoas transgénero, lançaram há um mês o T Guys Cuddle Too, um canal no YouTube onde falam sobre identidade e transição de género a partir de uma casa em Lisboa – quer para pessoas que começam a entrar no mundo das hormonas, quer para quem nunca questionou o sexo que lhe foi atribuído à nascença.

“Muita coisa mudou depois de fazermos a mastectomia”, continua Ary. “No meu caso, senti-me realmente livre, deixei de perder tempo a escolher a roupa que ia vestir, deixei de ficar imenso tempo em frente ao espelho a fazer binding [comprimir o tecido mamário para dar a aparência de um peito liso]. Ganhas muito mais espaço…” Isaac interrompe-o: “Ganhas mais vida, ponto número um.”

Os dois conheceram-se quando Ary publicou no Instagram uma fotografia após a mastectomia bilateral, cirurgia pela qual os dois optaram. “O Isaac falou comigo para me felicitar e a partir daí começamos a trocar dicas e ideias um com o outro”, conta Ary, freelancer na área do cinema. Uma dessas ideias, discutida numa ida ao ginásio, era um espaço de debate e informação, aberto a todos, e que pudesse “ajudar famílias de pessoas LGBT, amigos, escolas e empresas a criar uma realidade mais humana”. Ali, a partir de casa e à frente de uma câmara, desafiam-se também a explorar “a própria disforia de género” [descrita pela Direcção-Geral da Saúde como “o desconforto e a angústia persistentes causados pela discrepância existente entre a identidade de género de uma pessoa e o sexo que lhe foi atribuído à nascença, os papéis de género a ele associados e/ou os caracteres sexuais primários e secundários].

“Há um tema que queremos explorar: a identidade e o quão castrada ela está na sociedade”, introduz Isaac, activista e barbeiro de 22 anos que iniciou a transição há três anos. Decidiram, logo no primeiro vídeo, explicar a diferença entre “cis [quando o género é o mesmo que o designado no nascimento] e “trans”, precisamente para introduzir toda a gente neste universo. A partir de agora temos vídeos que fazem falta, em que explicamos como fazer biding de forma mais segura, comunicar com a tua família ou iniciar a transição.” 

Quando Isaac começou o processo de transição, aos 18 anos, bateu à porta da associação associação ILGA Portugal - Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual, Trans e Intersexo. “Eu não sabia a que portas bater. Uma das coisas que nós queremos é que ninguém tenha de passar por isso.” Anos depois, o protagonista do documentário Rip 2 My Youth, idealizado pela agora namorada, Mariana Ramos, é membro suplente da direcção da associação que o ajudou, eleito a 25 de Outubro. “Não esperava a exposição” que o documentário realizado por estudantes da Escola Superior de Comunicação Social lhe trouxe, mas assumiu o “papel de activista” sem ter de pensar duas vezes. “O activismo de café é aquele que realmente mói. É o pequeno activismo que tens de fazer todos os dias quando sais à rua.”

Um dos objectivos é levar o projecto para fora da Internet e para dentro dos recreios, salas de aula e locais de trabalho. “Tens tanta informação negativa! Eu gostava de ter visto uma mensagem positiva. Também por isso é que tentamos falar de forma divertida. Porque isso, no final, é o que vai cativar as pessoas a verem mais vídeos.” Ary interrompe, baixinho: “Acho que, por vezes, pecámos um bocadinho por isso… Pode parecer que isto é muito tranquilo e para muita gente não é. E, em alguns momentos da nossa vida, não foi. Actualmente, cada vez menos a nossa transição faz parte da nossa identidade. Antes, a nossa preocupação era muito os pêlos, a barba e o peito. Quando nos apresentávamos era quase assim: ‘Ary, trans’, ri-se. “Eventualmente começamos a trabalhar outros campos da nossa vida, como o crescimento pessoal, a carreira, que nos permitem não ser ‘trans’ em tudo.”

Sentem-se até preparados para experimentar uma noite num mundo que os fascina — e assusta, ao mesmo tempo. “Se há algo que temos em comum é adorarmos drags”, diz Isaac dos Santos. “Quando as pessoas me perguntam o que é uma drag queen, a melhor definição que eu arranjei até hoje é que é uma mulher em esteróides”, atira. Eles querem, por uma noite, ser uma drag queen, conta Ary, que colabora regularmente com o Trumps, provavelmente a discoteca LGBTI mais conhecida de Lisboa. “Para nós, é um teste à nossa disforia. Nós não gostávamos de como éramos, fizemos a transição e agora vamos pôr em cima tudo o que nos dá suores frios, que nos faz tremer. As coisas que mais odiávamos em nós e agora, voluntariamente, por uma noite, ponderamos pô-las.”

“Acho que vai levar a forma como nós lidamos com a nossa disforia para um local mais de paz, mais de positivismo.” Para Isaac, a noite pode correr muito mal. Mas também pode correr muito bem.