O fim da competitividade fiscal
Está em preparação a harmonização fiscal, novos impostos europeus e o fim da unanimidade na política fiscal.
Depois de o Tribunal Europeu ter considerado que a Comissão Europeia pode alterar as decisões fiscais dos Estados-membros, a Comissão vai propor acabar com a regra da unanimidade na política fiscal da União Europeia e tentar criar novos impostos europeus. Está em curso uma transformação da economia europeia e da ideia de soberania fiscal, a partir de Bruxelas.
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Depois de o Tribunal Europeu ter considerado que a Comissão Europeia pode alterar as decisões fiscais dos Estados-membros, a Comissão vai propor acabar com a regra da unanimidade na política fiscal da União Europeia e tentar criar novos impostos europeus. Está em curso uma transformação da economia europeia e da ideia de soberania fiscal, a partir de Bruxelas.
O que no início deste ano era apenas matéria de uma comunicação da Comissão Europeia, sem o “poder de fogo” que teria uma proposta legislativa, ganhou fôlego e tracção e surge agora na Carta de Missão endereçada pela presidente eleita Ursula Von der Leyen ao comissário italiano com a pasta da Economia. A este é pedido que torne o Common Consolidated Corporate Tax Base (CCCTB) uma realidade, que combata os regimes fiscais “nocivos” (falta saber qual será a definição adoptada de regime fiscal nocivo) e que use todas as cláusulas dos tratados para tornar possível que propostas em matérias fiscal possam ser adoptadas por maioria qualificada.
Na sua audição no Parlamento Europeu, a questão passou entre os pingos da chuva, como uma lateralidade que pouco escrutínio ou detalhe mereceu. O mesmo aconteceu com os anúncios de um Carbon Border Tax e de um European Digital Tax. E, no entanto, são transformações profundas.
Mais do que uma “evolução” ou apenas mais uma “federalização”, o que está em causa é o triunfo de uma visão de Europa uniforme, pouco competitiva e pré-determinada segundo as regras de Bruxelas, sobre outra, uma UE em que a concorrência fiscal entre Estados é entendida como positiva e os seus efeitos em termos de crescimento e atracção de investimento aproveitados pelos Estados. Nessa versão de Europa, sem concorrência fiscal e com harmonização, a Irlanda nunca se teria transformado no “Tigre Celta” e o Leste europeu não teria galopado, nos últimos anos, o pódio do crescimento.
Na mesma linha, não deixa de ser relevante notar que, a propósito da descida do imposto sobre empresas em vários estados europeus, a OCDE acaba por concluir que the fall in corporate tax rates had not been reflected in a decrease in corporate tax revenues and this is a “paradox”. Ou seja, os Estados que optaram por baixar impostos não viram a sua receita fiscal diminuir, mas antes conseguiram aumentá-la.
O segundo evento relevante a este propósito são as decisões, em primeira instância, do Tribunal Geral da União Europeia (EGC) nos casos dos tax rulings (uma decisão fiscal antecipada emitida pelas autoridades tributárias para empresas e indivíduos que solicitam esclarecimentos sobre a interpretação das leis tributárias ou acordos tributários), sobre as supostas vantagens fiscais ilegais atribuídas pela Holanda à Starbucks e pelo Luxemburgo à Fiat. Embora no caso do Luxemburgo o tribunal confirme a decisão da Comissão e no caso da Holanda anule essa mesma decisão, o resultado prático dos acórdãos, em termos de protecção da soberania fiscal, é semelhante. Isto porque em ambos o tribunal confirma a interpretação da Comissão Europeia de que, em determinadas circunstâncias, é lícito à Direcção Geral da Concorrência avaliar as regras aplicáveis em termos de impostos sobre empresas e obrigar Estados-membros a “recuperar” valores que a Comissão entende que deveriam ter sido pagos e não o foram. Tal faz tábua rasa do princípio de que a lei fiscal é nacional e não retroactiva; que um tax ruling não é uma ajuda de Estado, mas apenas uma decisão fiscal antecipada em nome da clareza e da certeza jurídica e, por fim, que o Direito da Concorrência não será, de todo, a ferramenta adequada para a harmonização fiscal.
Diz o acórdão relativo ao Luxemburgo: “Em primeiro lugar, no que diz respeito ao argumento relativo à harmonização fiscal disfarçada [o Luxemburgo, na sua defesa, argumentara que a Comissão adoptara uma abordagem conducente a uma harmonização fiscal disfarçada], o tribunal observa que, ao considerar se a decisão fiscal controvertida cumpria as regras relativas aos auxílios estatais, a Comissão não prosseguiu nenhuma ‘harmonização fiscal’, mas exerceu o poder que lhe foi conferido pelos Tratados, verificando se essa decisão tributária conferia ao seu beneficiário uma vantagem em comparação à tributação ‘normal’, conforme definido pela legislação fiscal nacional.”
Tal significa que em primeira instância (o Luxemburgo poderá recorrer) o tribunal considerou que aferir da compatibilidade de determinadas decisões fiscais relativas à aplicação das leis nacionais (tax rulings) com as regras em matéria de Auxílios de Estado é um exercício de poder comum e não o extravasar das competências da Comissão Europeia em matéria de concorrência para entrar no domínio soberano da política fiscal.
A Comissão não pode regular as regras fiscais nacionais, mas, por esta via, pode invocar que a sua aplicação em concreto viola regras europeias e, portanto, levar a uma harmonização fiscal disfarçada, como argumentou o Luxemburgo.
Os próximos cinco anos serão, verdadeiramente, uma arena de combate em Bruxelas entre os que defendem, legitimamente, a harmonização fiscal e a capacidade tributária própria da UE, com a possibilidade de criar impostos, e aqueles que, de forma igualmente legítima, se opõem a tal visão e defendem a concorrência fiscal e o mercado livre. Esta batalha terá como ponto alto a futura proposta sobre o fim do direito de veto no Conselho em matéria fiscal, que não tardará a aparecer. Já muitos se posicionaram nesta arena, mas muitos outros serão chamados a fazê-lo e esta não é uma matéria menor ou subalterna. É uma das questões mais fundamentais e definidoras do futuro que queremos.
Quem, como é o meu caso, acredita na liberdade, no mercado, na concorrência leal e numa Europa que seja o somatório de Estados independentes, soberanos e fortes, só pode posicionar-se no lado da defesa intransigente da liberdade e da concorrência fiscal. Quem acredita num mercado livre em que os Estados competem de forma saudável entre si, acredita que a concorrência fiscal é boa, cria eficiência e traz vantagens para o contribuinte.
Acabar com o voto por unanimidade em matéria fiscal significa que os Estados-membros da UE deixam de ser soberanos para vetar qualquer proposta nesta matéria. Além disso, escancara a porta à desde há muito desejada harmonização fiscal, decretando o fim da capacidade de cada Estado definir o seu regime fiscal e procurar dessa forma atrair investimento, crescimento económico e maior competitividade num mundo global.
Tal implica ir ainda mais longe do que federalizar a UE, na medida em que até numa federação pode (e deve!) existir concorrência fiscal.