Antes, Dorantes e depois: uma noite musical magnífica no Flamenco de Lisboa

A estreia lisboeta do pianista e compositor espanhol Dorantes foi verdadeiramente memorável. O Festival Flamenco está, mais uma vez, de parabéns por tão distinta escolha no seu cartaz de 2019.

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Dorantes com Leonor Leal na Aula Magna DR/FESTIVAL FLAMENCO DE LISBOA

Dorantes vinha recomendado com suficientes encómios para que não passasse despercebido, é certo. Mas mesmo as gravações disponíveis nas plataformas digitais não permitiam antever o que, em palco, nos foi dado a ver e a ouvir em Lisboa. Perante uma Aula Magna meia de público mas cheia no que à curiosidade e ao entusiasmo dizia respeito, David Peña Dorantes apresentou-se em trio, ou melhor, em quarteto – e já explicaremos porquê. Diante de um Yamaha, que tocou (e percutiu) com mestria, Dorantes mostrou que a sua ligação ao flamenco passa por um experimentalismo onde o jazz e a música contemporânea se ligam fluentemente à tradição flamenca, fazendo com que a sua música seja em primeiro lugar puro encanto, iludindo etiquetas e classificações redutoras. A Rondeña com que abriu a noite, em solo absoluto, foi prova disso: enraizada num palo flamenco derivado do antigo fandango malaguenho, às mãos de Dorantes foi teatro (cordas percutidas com a gravidade fúnebre de sinos), sonata, vibração rítmica, entusiasmo, delicadeza lírica e torrencial tempestade tímbrica.

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Dorantes vinha recomendado com suficientes encómios para que não passasse despercebido, é certo. Mas mesmo as gravações disponíveis nas plataformas digitais não permitiam antever o que, em palco, nos foi dado a ver e a ouvir em Lisboa. Perante uma Aula Magna meia de público mas cheia no que à curiosidade e ao entusiasmo dizia respeito, David Peña Dorantes apresentou-se em trio, ou melhor, em quarteto – e já explicaremos porquê. Diante de um Yamaha, que tocou (e percutiu) com mestria, Dorantes mostrou que a sua ligação ao flamenco passa por um experimentalismo onde o jazz e a música contemporânea se ligam fluentemente à tradição flamenca, fazendo com que a sua música seja em primeiro lugar puro encanto, iludindo etiquetas e classificações redutoras. A Rondeña com que abriu a noite, em solo absoluto, foi prova disso: enraizada num palo flamenco derivado do antigo fandango malaguenho, às mãos de Dorantes foi teatro (cordas percutidas com a gravidade fúnebre de sinos), sonata, vibração rítmica, entusiasmo, delicadeza lírica e torrencial tempestade tímbrica.

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Dorantes na Aula Magna DR/FESTIVAL FLAMENCO DE LISBOA

Percorrendo temas do seu mais recente disco, El Tiempo por Testigo (2017), a par de outros do seu repertório como Orobroy ou Batir de Alas (este dedicado à sua mãe), Dorantes mostrou que tem mesmo o tempo por testemunha, porque as composições que aborda resistem às interrogações dos calendários e, a cada passo, fazem-se contemporâneas às suas mãos. Javier Moreno (contrabaixo) e Javi Ruibal (bateria e cajón) foram parceiros à altura do brilhantismo pianístico de Dorantes, mas coube à bailaora Leonor Leal um particular destaque e o mérito foi todo seu.

Não é a primeira vez que, em concertos inteiramente instrumentais (ou até com participações vocais), a presença de baile surge como uma espécie de adereço, um “enfeite” alegórico porventura dispensável no contexto. No caso de Leonor Leal (nascida em 1980, em Jerez de la Frontera) é precisamente o contrário que se passa. Sentimo-la como um quarto e brilhante solista, cujo instrumento é o próprio corpo, dos gestos ao sapateado, toda ela harmoniosamente “colada” à música, como se já viesse com a partitura (e esta frase não é minha, é de Carlos Alberto Moniz, um dos músicos que, na plateia – onde também estava Rui Veloso – se lhe renderam). A começar pela sua figura em palco, qual bailarina dos Ballets Russes de Diaghilev trazida numa viagem no tempo para a paleta do flamenco contemporâneo, com gestos de uma precisão e beleza tocantes, sem a rispidez facial de algumas bailaoras do flamenco clássico, exibindo antes um sorriso sedutor que foi acompanhando a sua formidável actuação. Leonor Leal foi o elemento que fez do trio um quarteto – e sem ela o concerto não seria o que foi.

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Dorantes, Leonor Leal, Javier Moreno e Javier Ruibal na Aula Magna DR/FESTIVAL FLAMENCO DE LISBOA

Sem sombra de vedetismo (pelo contrário), Dorantes concluiu o concerto com mais dois temas do disco El Tiempo por Testigo: primeiro Semblanzas de um río, e depois, já no encore (exigido por fortes aplausos, com a audiência de pé), Caravana de los zincalis, estruturado como uma suite, em vários andamentos. Dois momentos altos num espectáculo que não teve, na verdade, momentos baixos. Porque foi, todo ele, emoção genuína alimentada por música com M grande.

Dividido, este ano, por três noites não consecutivas, o Festival Flamenco de Lisboa estendeu-se nesta edição também ao Porto e, nele, já se registaram as seguintes actuações: Camerata Flamenco Project na Casa da Música do Porto (dia 10) e na Voz do Operário em Lisboa (dia 12, aqui com a Companhia da cantaora Célia Romero); e Dorantes, na Casa da Música (dia 23) e na Aula Magna de Lisboa (24). Em Novembro, o festival encerra com o bailaor Eduardo Guerrero, primeiro no Porto, na Sala Suggia da Casa da Música (dia 25) e depois em Lisboa, de novo na Aula Magna (dia 29). Ambos às 21h.