Novos velhos problemas – a propósito de algumas reações à nova disciplina de História, Culturas e Democracias
Em teoria, o programa da nova disciplina, ainda que com imperfeições e pontos discutíveis, pode ser o primeiro passo de um processo fundamental na revalorização social do ensino da história.
A criação de uma disciplina opcional nos cursos científicos e tecnológicos do ensino secundário, cuja base assenta na história, só pode ser saudada. Desde há muito que uma excessiva especialização tem amputado os alunos de uma certa abrangência científica para lá das áreas específicas dos seus percursos. A história é assim imprescindível para que os alunos possam apreender um conjunto de saberes e de ferramentas para se situarem enquanto cidadãos. Esse conhecimento permite ter consciência de como chegamos até aqui enquanto sociedade, e as ferramentas científicas necessárias à historiografia, alicerçadas na seleção e crítica de fontes e na sua análise, contribui para criar uma postura crítica sobre os processos de difusão de conhecimento e informação – algo especialmente importante num tempo em que tanto se discute a permeabilidade face às fake news.
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A criação de uma disciplina opcional nos cursos científicos e tecnológicos do ensino secundário, cuja base assenta na história, só pode ser saudada. Desde há muito que uma excessiva especialização tem amputado os alunos de uma certa abrangência científica para lá das áreas específicas dos seus percursos. A história é assim imprescindível para que os alunos possam apreender um conjunto de saberes e de ferramentas para se situarem enquanto cidadãos. Esse conhecimento permite ter consciência de como chegamos até aqui enquanto sociedade, e as ferramentas científicas necessárias à historiografia, alicerçadas na seleção e crítica de fontes e na sua análise, contribui para criar uma postura crítica sobre os processos de difusão de conhecimento e informação – algo especialmente importante num tempo em que tanto se discute a permeabilidade face às fake news.
Apesar das questões e reservas que se possam colocar quanto ao programa e sua operacionalização, a intenção geral é virtuosa e algumas das críticas que têm vindo a público, em particular as que foram proferidas por Jaime Game e Jaime Nogueira Pinto no espaço moderado por José Manuel Fernandes no jornal Observador, são desajustadas e exageradas. Os referidos comentadores afirmam que o programa está eivado de preconceitos ideológicos, criticam o que chamam de “experimentalismo”, desconfiam da latitude de autonomia concedida aos docentes, desvalorizam a tónica que é colocada nos processos de construção do saber histórico em detrimento da acumulação de ‘conhecimento’, e discordam do que classificam de subalternização de uma narrativa nacional. Algumas das críticas parecem-me francamente descabidas até em face do que é o mais básico cânone científico historiográfico.
Jaime Game carateriza a orientação geral do programa como alicerçada numa ideia acerca da história como um processo de construção e desconstrução, onde se apela à contra-intuição dos alunos. Não há aqui nada de negativo, mas sim de elementar para um qualquer licenciado em história. A historiografia moderna é um processo orientado por regras científicas que passam pela colocação de questões, pela reunião de indícios que permitam responder às perguntas colocadas, e pela formulação de hipóteses. O material de trabalho dos historiadores agudiza a importância de se saber selecionar e criticar uma fonte. Caso o façamos sem a tal contra-intuição que é implicitamente negativizada por Jaime Gama, corremos o risco de nos tornarmos prisioneiros da fonte em lugar de a utilizarmos como material para responder às questões colocadas. O problema é que poucos alunos saem do ensino obrigatório com uma perceção mínima do que é o processo de construção do conhecimento historiográfico. A desconfiança de Jaime Gama parece apontar para uma rejeição de um ambiente de trabalho que aproxime os alunos deste método, privilegiando a manutenção da aprendizagem da história como a absorção de narrativas como se elas fossem uma substância em si, e reduzindo o papel de cada agente à sua simples difusão.
Esta perceção traduz-se na crítica a algumas propostas do programa, tomando-as como ofensas ao que deveria ser o credo nacional. Um dos seus pontos incentiva a familiarização dos alunos com os métodos de criação do conhecimento historiográfico, através do questionamento e crítica de fontes e da enfatização de que estas não são elementos neutros que chegam milagrosamente do passado para contar toda a verdade. Uma das propostas de trabalho para cumprir este objetivo usa o exemplo de Aljubarrota. O programa mais não faz do que sugerir, a partir de um episódio histórico, que os alunos tomem conhecimento da existência de outros testemunhos sobre a batalha e o período em que ela ocorreu como forma de aprenderem um passo imprescindível na investigação: a recolha do máximo de testemunhos sobre um dado acontecimento ou problema, de modo a reunir informação diversificada que possa ser cruzada.
Não vejo por isso em que medida a proposta de trabalho possa ser negativa. Só o será para quem quiser difundir ideias feitas, mas o propósito da ciência é ultrapassar o senso comum. Se queremos então que os alunos se insiram num ambiente de discussão científica e não de simples difusão de narrativas, torna-se incompreensível a posição de Jaime Nogueira Pinto, que duvida “que outros façam o mesmo”, como se o que estivesse aqui em causa fosse uma disputa entre portugueses e espanhóis, e não munir os alunos com ferramentas de trabalho que lhes permitam aprender a analisar um fenómeno histórico. Tal não conduzirá ao que Jaime Gama vê como desvalorização da visão portuguesa, nem ao desvirtuamento do episódio como elemento identitário, como refere José Manuel Fernandes. O que se propõe aos alunos a partir desta proposta de trabalho é apresentar uma posição metodológica sem a qual trabalhos da envergadura científica como os de João Gouveia Monteiro não poderiam ter sido elaborados.
As críticas dos intervenientes, que acusam o programa de ser ideologicamente marcado, propõem a manutenção de um quadro concetual do ensino da história que é ele também altamente ideológico, estanque, assente em narrativas rígidas e difusoras de quadros e valores que não assumem como ideológicos, mas sim como uma espécie de filtro real e único, e expressam uma visão que qualquer academia reconhece atualmente como desajustada cientificamente.
Em teoria, o programa da nova disciplina, ainda que com imperfeições e pontos discutíveis, pode ser o primeiro passo de um processo fundamental na revalorização social do ensino da história: a insistência no questionamento e no método como a operação mais segura para formar melhores cidadãos, analiticamente mais capazes, e protegidos das ‘ideologias’ que os vários campos políticos se acusam mutuamente de querer inserir nas escolas.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico