A noite longa do Chile
Espera-se por uma resposta às reais necessidades do combativo povo chileno, agora flanqueado por militares, mas de queixo erguido e com a esperança de conseguir romper com décadas de abuso e de desigualdades.
São 22h30 de quarta-feira, 23 de Outubro de 2019. Há 30 minutos começou o toque de recolher obrigatório em Santiago do Chile, pelo quinto dia consecutivo desde que o Presidente instaurou esta medida no quadro de um estado de emergência devido à contestação social que eclodiu na última sexta-feira.
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São 22h30 de quarta-feira, 23 de Outubro de 2019. Há 30 minutos começou o toque de recolher obrigatório em Santiago do Chile, pelo quinto dia consecutivo desde que o Presidente instaurou esta medida no quadro de um estado de emergência devido à contestação social que eclodiu na última sexta-feira.
Foi um dia estranho. Mais um neste movimento que não tem cor política. Já se passaram 24 horas sobre os anúncios feitos pelo Governo: uma série de promessas focadas em aliviar problemas económicos específicos, mas sem resposta às questões subjacentes ao conflito. Foi isso mesmo que repetiram, com força, os milhares de chilenos que voltaram às ruas para se manifestarem contra medidas que não resolvem o problema da desigualdade nem da precariedade de grande parte da população, fruto de um sistema que levou o Chile, o oásis da América Latina, segundo o Presidente Sebastián Piñera, a ser um dos países com maiores desigualdades desta região.
O descontentamento desta multidão que grita alto que “o Chile acordou” multiplicou-se com as declarações oficiais. Do palácio de La Moneda, a frase “estamos a regressar à normalidade” soava discordante com o que ia acontecendo nas últimas horas. Pretendia-se que se fosse recuperando o ritmo de há apenas uma semana, quando os primeiros estudantes protestaram contra o aumento dos títulos de transporte do metro e os diferentes ministérios, minimizando o sucedido, os tratava como “miúdos sem futuro”.
Não souberam lidar com o movimento. Tão-pouco previram que, nesta quarta-feira, se juntariam aos protestos vários sindicatos de trabalhadores, da saúde e de diferentes organizações sociais. Porém, o problema para Piñera não estaria só nas ruas.
Devido aos conflitos, até ao momento, já se somam mais de 2400 pessoas detidas, mais de 530 pessoas feridas e 18 mortos, cinco dos quais vítimas directas de agentes do Estado, segundo indica o Instituto Nacional de Direitos Humanos (INDH). E se estas cifras já surpreendiam, uma denuncia viria a desferir um duro golpe: uma estação de metro que estará a ser usada como centro de tortura. As lembranças sombrias da ditadura de Augusto Pinochet apareceram com o rosto mais tenebroso.
Não era a única coisa. Segundo Rodrigo Bustos, director jurídico da NHRI, “também conhecemos cinco casos de mulheres que foram despidas, assim como uma criança que se encontrava detida com o seu tio. Além disso, temos conhecimento de casos de mulheres vítimas de ameaças de violação, uma por um militar das forças armadas e outra por polícias, que chegaram a tocá-la”.
Estranhamente, e apesar de tudo, não há medo no rosto dos cidadãos, mas angústia e dor, sobretudo depois de o Presidente Piñera ter falado de guerra contra um inimigo invisível e de o ministro do Interior, Andrés Chadwick, afirmar não ter responsabilidade política nos acontecimentos. É por isso que as pessoas, que, com as suas panelas, não cessam o ruído, dia após dia, os apontam como os grandes responsáveis, aumentando assim a distância entre o partido no poder e a impotência de um povo que não se sente representado ou ouvido pela classe política.
E as perguntas não são se escutam apenas por todo o Chile. A Fundação Mario Benedetti, no Uruguai, mostrou-se ofendida pelo uso que o Presidente do Chile fez da frase “quando tivemos as respostas, as perguntas mudaram”, daquele escritor uruguaio. “A Fundação repudia o uso descontextualizado de uma frase de Mario Benedetti pelo Presidente do Chile, Sebastián Piñera, numa altura em que as acções do seu Governo estão nos antípodas do que era o pensamento do nosso escritor “, disseram, em comunicado oficial.
Não é o único golpe que veio hoje [quarta-feira] do estrangeiro. Países como a França lançaram a ideia de não comparecerem à XXV Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP25), a ser realizada em Dezembro, em Santiago. Aliás, o deputado francês Alexis Corbière solicitou formalmente ao Governo de Emmanuel Macron que suspendesse a participação do seu país na cimeira devido à “repressão política exercida contra o povo” pelo Governo de Sebastián Piñera.
À medida que as críticas às acções do Governo são cada vez maiores, espera-se por uma resposta às reais necessidades do combativo povo chileno, agora flanqueado por militares, mas de queixo erguido e com a esperança de conseguir romper com décadas de abuso e de desigualdades.
Neste momento, já passa da meia-noite em Santiago do Chile. O silêncio, que habita as ruas de forma triste e dolorosa, é quebrado pelas canções de Violeta Parra, que atravessam as janelas de casas e edifícios. Então, o grito “milicos vuelvan a los cuarteles” quebra a noite, até que a música volta a acalmar e a aproximar pessoas que, em democracia, se encontram privadas de liberdade.
Ao longe, de alguma varanda, ressoam as letras de El derecho de vivir en paz, um dos hinos de Víctor Jara. Pouco importa que haja militares a assistir; o som das panelas retorna espontaneamente; panelas que têm sido fiéis e ruidosas companheiras e que, nesta longa noite no Chile, combatem como espingardas aos ouvidos daqueles que parecem cada vez mais surdos.