O peso da História no Doclisboa

Com L’Époque e Heimat Is a Space in Time, Thomas Heise e Mathieu Bareyre dialogam sobre o passado e o futuro da Europa.

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“Por que temos de viver nestes tempos?” A pergunta foi feita em 1942 por uma tia-avó de Thomas Heise, judia vienense à beira de ser enviada para a morte num campo de concentração. Mas também está na cabeça dos jovens parisienses que questionam o que o futuro lhes reserva. Quer sejam da pequena ou da grande burguesia, quer sejam das cités suburbanas onde nada existe, todos eles dizem não saber o que o amanhã trará. “Mesmo os Pokémon acham que os nossos tempos são agoirentos”, reza um graffiti encontrado ao acaso na capital francesa pela câmara de Matthieu Bareyre.

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“Por que temos de viver nestes tempos?” A pergunta foi feita em 1942 por uma tia-avó de Thomas Heise, judia vienense à beira de ser enviada para a morte num campo de concentração. Mas também está na cabeça dos jovens parisienses que questionam o que o futuro lhes reserva. Quer sejam da pequena ou da grande burguesia, quer sejam das cités suburbanas onde nada existe, todos eles dizem não saber o que o amanhã trará. “Mesmo os Pokémon acham que os nossos tempos são agoirentos”, reza um graffiti encontrado ao acaso na capital francesa pela câmara de Matthieu Bareyre.

São estes os nossos tempos: as mesmas perguntas dos tempos que nos antecederam, e provavelmente também dos tempos que hão-de vir. São os tempos de dois dos momentos mais extraordinários da edição 2019 do Doclisboa: L’Époque, de Mathieu Bareyre (secção Riscos), e Heimat is a Space in Time, de Thomas Heise (secção Da Terra à Lua), sessões únicas em todos os sentidos. Porque não vão ter repetição na programação do festival, mas sobretudo pelo peso que cada filme deixa: no caso de Heimat Is a Space in Time, estamos a falar do peso de um século de história, que é da Alemanha mas que é também da Europa e de uma família, a família do realizador; no caso de L’Époque, do peso de um momento específico no tempo, a Paris nocturna de 2015 a 2017, e a juventude que a percorre com tudo difuso, em aberto. E porque são também filmes que integram a própria experiência da sua construção e da sua projecção, pedindo ao espectador um investimento que transcende a simples recepção de uma obra exibida num ecrã. Como tantos filmes na programação do Doclisboa e de outros festivais, são vasos comunicantes que dialogam entre si e que dialogam com o próprio percurso que o espectador escolhe fazer pelo evento. 

Matthieu Bareyre filma num mesmo movimento festas e manifestações, jantares e copos, passeios pelos Campos Elísios, alunos de ciências políticas e suburbanos negros que vendem drogas para alimentar a família, todos a falar do que são, do que querem, do que esperam. L’Époque é um mosaico-Photomaton à la minuta, uma colecção de polaróides de quem olha à sua volta e compreende que não vive no mundo em que os seus pais cresceram ou acreditaram. E que, talvez por isso, não acredite forçosamente no mundo em que vive.

Essa crença é constantemente questionada ao longo das três horas e 40 minutos de Heimat Is a Space in Time, duração que passa num ápice enquanto seguimos o percurso de uma família alemã que manteve sempre uma certa integridade e uma certa diferença, no contexto de uma sociedade que pregava o conformismo e a identidade comum. “Com a desintegração espiritual surge o declínio da ética e da moral”, escrevia, ainda adolescente, Wilhelm Heise, o avô de Thomas Heise, num ensaio escolar. Por ter casado com uma judia, Wilhelm foi exonerado como professor, mas o casal sobreviveu à ascensão e à queda do regime nazi, enquanto a família austríaca da esposa Edith era apanhada nas teias do Holocausto. Um dos dois filhos, Wolfgang, pai de Thomas, tornou-se um reconhecido professor de filosofia na Alemanha de Leste, onde também enfrentou o desagrado do regime comunista e da sua busca de uma impossível pureza ideológica.

Através da correspondência e dos registos da família, ilustrados por imagens contemporâneas dos lugares de Berlim onde tudo teve lugar, Heise constrói uma saga familiar com tanto de banal quanto de majestoso. Através dos comboios e das linhas férreas que filma recorrentemente, o cineasta dá-nos o constante movimento da História que serve de pano de fundo à pequena história da sua família, trabalhando a própria noção de identidade nacional ao longo de um século de convulsões, terminando numa longa citação de Heiner Müller (1929-1995) que vai directamente ao coração da sociedade contemporânea (não só alemã). A noite cai sobre Berlim, antes de um epílogo que reconfirma como todos estes movimentos políticos e sociais empalidecem perante a vida individual de cada um de nós – fazendo a ponte com o modo como os jovens parisienses de L’Époque vivem o momento. Heimat Is a Space in Time podia ter como subtítulo a provocação syberbergiana Um Filme da Alemanha – mas é mais, muito mais do que apenas isso. É um filme da Europa, para o mundo. Dos tempos, nossos e dos outros.