As alterações climáticas podem matar
Poderão as instituições mundiais e nacionais não intervir sobre os causadores concretos e directos destes fenómenos? Já não bastam palavras.
As doenças provocadas pelas alterações climáticas provocadas pelo ser humano e as suas superestruturas já aí estão. Não se trata pois de alertar para o dia do apocalipse, mas de ver desde já e de forma concreta o que é que este modelo de desenvolvimento está a provocar no corpo humano. Deste modo, aquilo que são resultados de pesquisas científicas reveladas no respectivo meio académico deve sair para fora dessas fronteiras.
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As doenças provocadas pelas alterações climáticas provocadas pelo ser humano e as suas superestruturas já aí estão. Não se trata pois de alertar para o dia do apocalipse, mas de ver desde já e de forma concreta o que é que este modelo de desenvolvimento está a provocar no corpo humano. Deste modo, aquilo que são resultados de pesquisas científicas reveladas no respectivo meio académico deve sair para fora dessas fronteiras.
Já há neste momento estruturas universitárias, para além das que se dedicam especificamente ao ambiente, que estão a responder a esta necessidade. O Instituto de Saúde Ambiental da Faculdade de Medicina de Lisboa, a estrutura F3 (Food, Forestry and Farm) transversal a várias faculdades, criada por iniciativa do Instituto Superior de Agronomia, e o Instituto de Medicina Preventiva do Porto saem para fora da caixa daquilo que é restrito às matérias convencionais, para abarcarem novas áreas. No entanto, as faculdades de Medicina ainda não têm como disciplinas obrigatórias nos seus programas, excepto a da Universidade da Beira Interior, aquilo de que tanto se fala como sendo o “estilo de vida”, ou seja, a alimentação e o exercício. Também não há nas faculdades de Medicina disciplinas obrigatórias dedicadas ao ambiente. Perante as novas causas de doença e morte mais prevalentes nos países desenvolvidos e as outras causas globais, o paradigma do ensino deve mudar e adaptar-se à nova realidade.
É certo que o ser humano sempre adoeceu e morreu por causas ambientais. Quando há 100.000 anos o Homo sapiens caía de uma árvore e fracturava uma vértebra, o mais possível era morrer tetraplégico ou paraplégico. Quando contraía uma infecção, por muitas mezinhas que usasse (ao que parece fungos), também era possível que morresse em sépsis. Não houve pois um paraíso perdido e “antigamente” não era “bom”. Morria-se muito à nascença, chegava-se pouco a idoso, tendo em conta o que chamamos hoje idosos, e os bandos humanos eram pouco numerosos. Mas hoje, que podemos produzir mais comida, temos vacinas e antibióticos, podemos considerar que há novas doenças provocadas pelas alterações climáticas causadas pelo sistema económico e as suas formas de produção.
As várias poluições bem visíveis são geradoras de doenças mais conhecidas. Mas outras são menos visíveis e por vezes menos demonstráveis. Afirmar que há algo que é causa de doença não é fácil. Levou-se muitos anos até que se demonstrou que o tabaco podia ser causa de cancro do pulmão. Até aí ficava-se pela probabilidade.
De modo que, tal como se passou com o tabaco, decorrem muitas investigações, sempre com pouco apoio financeiro, para provar causas de doenças provocadas por agentes ambientais e outras, com muito apoio financeiro, para provar o contrário. O rol de substâncias que são os chamados “disruptores endócrinos” é enorme. Trata-se de substâncias ambientais que são incorporadas no corpo humano através das nossas portas abertas (pele, respiração, digestão) e vão ocupar receptores das células que estão lá para receber hormonas, os pequenos mensageiros do sangue, e não essas substâncias espúrias.
Mas há alguns dados de investigação que podem ser desde já revelados. Tratar-se-á aqui apenas de dois casos: as doenças provocadas pelas partículas flutuantes no ar durante a desmatação da Amazónia e uma nova doença renal, que é atribuída às novas e severas secas e subidas de temperatura produzidas pelo aquecimento global.
Relativamente às consequências da desmatação da Amazónia, o Observatório de Clima e Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Ministério da Saúde do Brasil) fez a avaliação da incidência de doenças respiratórias no Sul da Amazónia durante os últimos meses, tendo concluído por um aumento significativo. As queimadas na Amazónia e no Cerrado contribuem com 19% para as fontes globais de dióxido de carbono, óxido nitroso e metano com efeitos locais, regionais e globais. O fogo é provocado por acção humana, o espontâneo é raro, dada a humidade. Os efeitos para a saúde são não só provocados pelos gases como também pelas partículas finas e orgânicas libertadas. Esta poluição atmosférica afecta mais crianças e idosos. Nas crianças que fazem exercício ao ar livre, a deposição de partículas no pulmão aumenta cinco vezes. Provoca inflamação e aumenta a reacção auto-imune. É nesta perspectiva que um grupo de investigadores tem acompanhado o efeito das queimadas na redução da função pulmonar em crianças dos zero aos dez anos desde 2009. Para tal, estudaram as taxas de internamento nos hospitais da área da Amazónia. Em todos os meses de 2019, até Agosto, oficialmente o número de queimadas, em alguns meses, passou para o dobro ou mais. Em 96 cidades da zona da Amazónia Legal e estudados os internamentos, no ano de 2019 até Agosto foram contabilizados 2556 internamentos de crianças, quando o esperado seriam 2011 tendo em conta os anos anteriores. Portanto, mais 545 internamentos. No Mato Grosso, na região de São Félix de Xingu e no sul do Maranhão, que também são afectadas, também houve um excesso de internamentos. Em toda a área abrangida só em Maio e Junho de 2019 foram internadas nestas regiões 5000 crianças por mês, o dobro do valor esperado. Passando para o nível global, de acordo com os especialistas (Organização Mundial da Saúde), em cada ano morrem sete milhões de pessoas no mundo em consequência da poluição do ar. São consequências ao nível respiratório, evidenciadas com rigor científico.
Há ainda doenças novas que surgem em consequência das alterações climáticas. Uma nova doença dos rins a que os investigadores chamam chronic kidney disease of unknown origin (CKDU), uma doença crónica renal de causa desconhecida, está a emergir. Descrita pela primeira vez em agricultores de El Salvador em 1990, não lhe foi dada, no entanto, a devida importância na imprensa para o público em geral. Apesar disso, foi referida crescentemente na América Central, do Sul e do Norte e no Médio Oriente. Em dez anos aumentou 83% na Guatemala. Na Nicarágua e em El Salvador é a segunda causa de morte. Investigadores do Hospital Johns Hopkins de Baltimore chamam-lhe epidemia, afastando as causas de diabetes e hipertensão. Acontecem nos meios agrícolas com “pobreza e falta de acesso a cuidados de saúde”. A causa desta nova doença renal mantém-se enigmática, mas os investigadores põem a hipótese de estar relacionada com “exposição ao calor e desidratação, embora outros factores como cádmio, chumbo, arsénico, viroses, pesticidas e outros químicos agrícolas” não devam ser afastados.
No entanto, a CKDU é cada vez mais atribuída ao aquecimento global, visto que a localização dos focos desta “epidemia” coincide com os pontos geográficos onde as temperaturas têm subido mais. É aí que a transpiração e a exaustão dos trabalhadores rurais mais se faz sentir e onde a água também escasseia. Estão reunidas as condições para a nova doença renal.
Os investigadores dizem na New England Journal of Medicine: “Estamos a viver uma época em que as alterações climáticas já não são distantes, uma questão existencial. Acontece agora e está a afectar a saúde humana de várias maneiras.” O calor está a chegar ao limite da adaptação fisiológica.
São estes alguns dados científicos. Poderão as instituições mundiais e nacionais não intervir sobre os causadores concretos e directos destes fenómenos? Não bastam palavras. A culpabilização e responsabilização individual pouco alteram o problema global. Tem de haver uma acção concreta, directa e rápida sobre o sistema que está a matar lenta ou rapidamente os seres humanos.