Podem chamar-me bota-de-elástico
As máquinas, por mais perfeitas que sejam, jamais conseguirão replicar valores como a prudência, a compaixão e o equilíbrio, que são intrínsecos ao acto de julgar.
Talvez vá parecer um bota-de-elástico a tentar parar o vento com as mãos, mas não é esse risco que me vai impedir de falar aqui do fundamentalismo tecnológico que domina hoje a acção da justiça. Como se, numa actividade tão singular, a complexidade do conhecimento e das emoções humanas pudesse ser subjugada pela frieza e eficiência das máquinas, a um ponto tal que parece não conhecer limites.
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Talvez vá parecer um bota-de-elástico a tentar parar o vento com as mãos, mas não é esse risco que me vai impedir de falar aqui do fundamentalismo tecnológico que domina hoje a acção da justiça. Como se, numa actividade tão singular, a complexidade do conhecimento e das emoções humanas pudesse ser subjugada pela frieza e eficiência das máquinas, a um ponto tal que parece não conhecer limites.
A automatização dos actos dos magistrados e das secretarias judiciais, com os programas Citius e SITAF, é cada vez mais intrusiva e asfixiante. A tramitação dos processos judiciais – onde se materializa o poder constitucional de administrar a justiça – deixou em grande parte de ser gerida pelos juízes, para passar a ser determinada pelos decisores políticos e técnicos que concebem os programas e forçam a sua utilização. A desmaterialização dos processos quer chegar ao absurdo de proibir o juiz de organizar o seu próprio dossier com os documentos relevantes em papel, privando-o do principal instrumento de trabalho para proferir uma decisão ponderada e conscienciosa. A chamada inteligência artificial faz experiências para programar máquinas com algoritmos de cálculo que tentam replicar o sistema neuronal do cérebro humano no processo de análise dos factos, interpretação das leis e tomada de decisão.
Muito embora dizer isto seja contra-corrente e muito fácil de atacar, é cada vez mais duvidoso que a partir do ponto em que se atinge um nível de eficiência adequado às finalidades e características da actividade em causa, o processo de automatização continue a ter utilidade, ao ponto de justificar gastos de milhões em mais e mais tecnologias. Fica-se muitas vezes com a ideia que essas políticas públicas estão mais direccionadas para servir as agendas pessoais dos seus protagonistas – normalmente governantes e técnicos que se desdobram pelo mundo fora em conferências autocontemplativas, alargando as suas redes de contactos e oportunidades de trabalho – e os negócios das grandes empresas de programação, alojamento de informação e comercialização de equipamentos. Posso dar um exemplo impressivo: qual é a racionalidade económica de investir recursos para obter um ganho de 3 dias na notificação electrónica de sentenças de processos que demoram 10 anos até à decisão final? Não faria mais sentido canalizar esses recursos para obter resultados mais significativos na redução dos tempos de pendência?
Um dia vamos concluir que em actividades humanas caracterizadas pela subjectividade, criatividade, intuição e emoções, os limites foram ultrapassados. A justiça começa a ser um exemplo disso. As máquinas, por mais perfeitas que sejam, jamais conseguirão replicar valores como a prudência, a compaixão e o equilíbrio, que são intrínsecos ao acto de julgar. E há já consequências que talvez estejam a escapar à nossa análise.
A administração independente da justiça desvirtuou-se. Não se criaram ferramentas informáticas adaptadas ao trabalho dos juízes; os juízes tiveram de mudar o modo de trabalhar para se adaptarem a ferramentas concebidas e controladas por decisores políticos e técnicos. Isso vai, também, potenciar o cometimento de erros judiciários a um nível inaceitável. Ninguém pode esperar um julgamento ponderado num processo complexo, em que seja necessário analisar em pouco tempo milhares de documentos digitalizados, sem suporte em papel, em zonas do país em que as redes de comunicação são tão lentas que demoram 5 minutos a abrir cada PDF.
Por outro lado, muita informação processual crítica e bases de dados que permitem, se mal utilizadas, monitorizar, prever e influenciar o trabalho do juiz, passaram a estar no domínio de entidades governamentais que dela não deviam ter conhecimento.
A direcção funcional do serviço das secretarias judiciais, que, como não podia deixar de ser, a lei atribui ao juiz, está a ser subvertida por alterações informáticas incompreensíveis. Em vez de ser o juiz que programa os actos do processo e organiza as prioridades do seu trabalho, pretende-se entregar essa responsabilidade às secretarias judiciais, que trabalham sob controlo hierárquico do governo, fazendo do juiz um mero espectador subordinado a decisões alheias.
É este o ponto em que estamos. Se denunciar isto e dizer que é preciso fazer uma pausa para ver se estamos a ir no bom caminho é ser bota-de-elástico, pois então que seja.