O “bullying imobiliário” ocupou Lisboa, mas há quem o queira despejar
Pelo direito a habitar Lisboa e contra os despejos, o colectivo Left Hand Rotation realizou um documentário que quer chamar os lisboetas para a luta. O que vai acontecer aqui? mostra como o “bullying da especulação imobiliária” está por toda a cidade. Mas este é o “momento-chave” para o despejar. E já há quem o esteja a fazer.
Eduardo Nicola recebeu uma carta a dizer “que o prédio Santos Lima ia ser vendido a duas imobiliárias”. Pouco tempo depois, encontrou um anúncio que dizia que esse mesmo prédio — onde morava — estava à venda por sete milhões de euros. Desde então, as 17 famílias que vivem neste edifício de Marvila dizem estar a ser “pressionadas” para sair: as portas dos apartamentos desocupados foram arrombadas, as paredes e o chão esburacados. “O prolongamento da Expo 98 está a chegar aqui e o metro quadrado tem muito valor”, explica o residente.
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Eduardo Nicola recebeu uma carta a dizer “que o prédio Santos Lima ia ser vendido a duas imobiliárias”. Pouco tempo depois, encontrou um anúncio que dizia que esse mesmo prédio — onde morava — estava à venda por sete milhões de euros. Desde então, as 17 famílias que vivem neste edifício de Marvila dizem estar a ser “pressionadas” para sair: as portas dos apartamentos desocupados foram arrombadas, as paredes e o chão esburacados. “O prolongamento da Expo 98 está a chegar aqui e o metro quadrado tem muito valor”, explica o residente.
Esta é uma das realidades que o documentário O que vai acontecer aqui?, feito pelo colectivo espanhol Left Hand Rotation, em conjunto com as associações portuguesas Habita e Stop Despejos, mostra. Despejos, demolições, programas de realojamento que não chegam para todos: no Bairro 6 de Maio, na Amadora, tem sido assim desde 2016, altura em que “as associações começaram a acompanhar os moradores do bairro”, contam os espanhóis — que dispensam apresentações individuais —, em entrevista telefónica com o P3. A Habita sinalizou pelo menos 50 famílias despejadas do 6 de Maio e excluídas do Programa Especial de Realojamento, que prevê o pagamento de parte do custo do arrendamento de habitações destinadas ao realojamento das famílias recenseadas no âmbito do programa. As que ainda lá vivem — como Cátia, a jovem que diz ter aprendido que “é preciso lutar” — foram empurradas para uma situação de “vulnerabilidade máxima”, inseridas num cenário que “parece de guerra”, tanto é o “entulho das demolições”.
Mas o documentário de quase uma hora e meia, disponível online na íntegra, que se estreou no Festival HabitAcção, em Setembro último, não se debruça exclusivamente sobre os moradores deste bairro ou a “comissão” que criaram para lutar pelo direito à habitação, nem somente sobre os habitantes do prédio Santos Lima. O que vai acontecer aqui? conta também a história de Nazaré Jorge que, aos 83 anos — e depois de 40 a morar numa casa arrendada pela tia, na Rua Rodrigues Sampaio —, foi despejada sem ter tempo para procurar uma alternativa; conta a história de resistência dos residentes da Mouraria e das 17 famílias do prédio Santos Lima, em Marvila, pressionadas a abandonar o edifício à venda por sete milhões de euros.
Em 2016, o colectivo lançou Terramotourism, um documentário que comparava as ruínas provocadas pelo terramoto de 1755 com as provocadas pela “turistificação” da cidade. Na altura, contaram ao P3 como o conceito de “gentrificação”, por exemplo, ainda era negado por alguns lisboetas. Desta vez, “as pessoas que aparecem no documentário já estão decididas a ir para a luta”, referem. “O importante é as pessoas saberem que isto dá resultados, que quem luta realmente consegue melhorar a sua situação.”
O objectivo do colectivo é, precisamente, o de “fomentar a cultura de resistência, atraindo e motivando pessoas para a luta”. Em 2017, o Left Hand Rotation andou por países da América do Sul e Espanha para falar de gentrificação. Em Portugal, onde já vivem há 12 anos, lutam contra os despejos, a gentrificação, o turismo excessivo, através da realização de documentários e trabalho em conjunto com diferentes associações: um filme sobre a descaracterização do bairro de Alfama e outro sobre o mesmo problema nas ilhas do Porto, na freguesia do Bonfim, fazem parte da lista. Já nesta altura lhes diziam que os moradores estavam a ser “vítimas de bullying”.
Eduardo Nicola dá-lhe o mesmo nome neste documentário: “Bullying da especulação imobiliária”. E, ao contrário do que se possa pensar, não acontece apenas nos centros históricos. Em Lisboa, “há muitos fundos imobiliários na cidade a adquirir propriedades e a tratar a habitação como um activo financeiro — o que tem um impacto muito forte sobre a capacidade que as pessoas vão ter em aceder a uma habitação”, explica o colectivo. E estão “no centro, na periferia, na área metropolitana completa”.
Além da pressão exercida sobre os moradores, o documentário mostra ainda a dicotomia que se vive na cidade: ora espaços destruídos, como o Jardim da Glória, na Graça; ora imagens dos condomínios de luxo que lá vão nascer. Ora o desespero de quem vê a sua casa deixar de o ser; ora turistas alheados desta realidade. É a “invisibilidade” destes processos que “faz com que as pessoas possam levar uma vida tão afastada dos conflitos que outras pessoas estão a viver na mesma cidade”, apontam.
“Um centro histórico misto é um centro histórico saudável”, diz Luís Mendes, da associação Morar em Lisboa, no documentário. E Lisboa “cada vez é menos diversa”, atira o colectivo. “Cada vez mais há uma maior homogeneização da população, do que acontece nos espaços, da forma de habitar o espaço público.” Mas o mais importante, acreditam, é “as pessoas perceberem o que está a acontecer”: “Há uma grande contra-informação à volta do que é este investimento que está a chegar à cidade, atraído muitas vezes pela indústria turística e apoiado sobretudo no discurso da reabilitação.”
Por isso mesmo, realizam documentários e continuam “na luta”. “Este é o momento-chave para as pessoas exigirem mudanças”, defendem. Caso contrário, impõe-se a questão: o que vai acontecer aqui?
Artigo actualizado às 12h16 de 23 de Outubro: foi corrigida informação no terceiro parágrafo relativa à estreia do documentário.