Quo vadis Agricultura?
“Espartilhar” as competências tradicionais do Ministério da Agricultura entre pelo menos três ministérios é uma ideia estranha, tão estranha que só espero que possa ser genial.
Começo pelo fim: “espartilhar” as competências tradicionais do Ministério da Agricultura entre pelo menos três ministérios (Ambiente e Ação Climática, que assume as florestas em exclusivo, Coesão Territorial, que arrecada o Desenvolvimento Rural, e Agricultura, que fica com o que sobra) parece-me ser uma ideia muito estranha. Tão estranha, tão estranha que só espero que possa ser genial.
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Começo pelo fim: “espartilhar” as competências tradicionais do Ministério da Agricultura entre pelo menos três ministérios (Ambiente e Ação Climática, que assume as florestas em exclusivo, Coesão Territorial, que arrecada o Desenvolvimento Rural, e Agricultura, que fica com o que sobra) parece-me ser uma ideia muito estranha. Tão estranha, tão estranha que só espero que possa ser genial.
Escrevo este texto dois dias depois de conhecidas as designações dos ministérios que irão compor o XXII Governo Constitucional, e os nomes dos respetivos titulares (a quem desejo toda a sorte), mas sem se conhecer o pormenor das competências que ficarão, de facto, atribuídas a cada um. O seu conteúdo arrisca-se, assim, a ser desmentido por factos supervenientes. Se assim for, será um bom sinal. Tentarei explicar o meu ponto de vista.
O “ministério da agricultura”, aqui em designação simplificada, incluía tradicionalmente dois grandes domínios de responsabilidade política: a agricultura e a floresta. As razões sempre foram mais ou menos evidentes: quer um, quer outro dizem respeito à utilização de uma parte muito significativa do nosso território e dos seus recursos naturais, com o objetivo de produzir produtos de origem vegetal (plantas, frutos, sementes, biomassa) e animal, bem como diversos serviços conexos. Para além disso, os agentes económicos (empresas ou “explorações”) que se dedicam à produção florestal coincidem, em grande parte, com aquelas que se dedicam à produção agrícola e pecuária, existindo evidentes complementaridades entre tais produções.
Com o tempo, e porque cedo se percebeu que o desenvolvimento dos territórios ocupados e geridos por estes agentes económicos – os chamados território rurais ou mundo rural – dependeria essencialmente da sua ação, foi acrescentada uma nova dimensão política ao “ministério da agricultura”: o desenvolvimento rural. Finalmente, e em tempos mais recentes, tendo em conta a importância crescente das questões ligadas à qualidade e segurança alimentar, também esta competência política ficou associada a este ministério.
As mudanças acentuadas que a nossa sociedade sofreu ao longo das últimas quatro décadas trouxeram à evidência diversos desequilíbrios nestes “territórios rurais”, traduzidos essencialmente num crescente divórcio entre o “mundo urbano” e o “mundo rural”, bem como numa desarticulação crescente entre diversas componentes do “mundo rural”, originando fenómenos crescentes de desertificação humana e de abandono de vastas áreas do território. Em particular, compreendemos hoje relativamente bem que a desarticulação das políticas para o mundo rural, traduzidas em medidas viradas, à vez, para a atividade agrícola ou para a atividade florestal, falharam numa dimensão essencial: esqueceram que os agentes económicos que se dedicam a um e outro tipo de atividades são os mesmos e promoveram pouco as compensações necessárias à manutenção dessa relação de equilíbrio.
Neste contexto, reforçado pela importância inequívoca que as atividades agrícola e florestal assumem na gestão dos recursos naturais e na preservação do ambiente em todas as suas dimensões, criou-se a nítida perceção de que era necessário caminhar para uma maior integração dessas políticas. Em particular, e no que diz respeito aos principais instrumentos financeiros da “política agrícola”, integrados na PAC, caminhou-se no sentido de construir um quadro que integrasse não só a agricultura e a floresta como também as preocupações mais amplas do desenvolvimento e coesão dos territórios rurais, a segurança alimentar, a proteção do ambiente a adaptação destas atividades ao processo de alterações climáticas e, com importância crescente, a mitigação dos seus efeitos.
É este o ponto de situação atual: a PAC é a única política europeia, com fôlego financeiro, que integra este conjunto de preocupações de forma articulada. E tem como “alvo” o conjunto dos únicos agentes que podem fazer a diferença nessas matérias: os agricultores e produtores florestais, através da implementação de sistemas diversificados de utilização do solo e recursos naturais, onde os sistemas agro-silvo-pastoris têm vindo a ganhar particular relevo enquanto soluções positivas para uma parte dos problemas que se pretendem resolver.
É neste contexto de reforço de articulação urgente que, em Portugal, resolvemos experimentar a ideia de distribuir por três ministérios (para já não falar do Ministério das Finanças) a condução dessas políticas. Para quem conheça a estrutura da PAC e a estrutura destes setores no nosso país, sabe bem da impossibilidade de ter três ministros, por muito competentes que sejam, a negociar em Bruxelas a sua adequação e a garantir em Portugal a sua aplicação.
A agricultura e a floresta são, antes de mais, atividades económicas que têm tido, apesar de inúmeros problemas e desafios com que se confrontam, desempenhos notáveis nos últimos anos. E é como atividades económicas que têm que continuar a ser tratadas, sob pena de cair por terra qualquer esperança de garantir sustentabilidade ao nosso território. Para além disso, é bom não esquecer que ambas são a origem da nossa alimentação, o que não é coisa pouca. Acresce, como referi, que são os agricultores e produtores florestais os únicos agentes que estão em condições de garantir eficazmente (estimulados por políticas inteligentes) a tão desejada coesão do território nacional e o upgrade de sustentabilidade que tem sido perseguido ao longo dos últimos anos, com sucessos, ainda que tímidos, alcançados. Não nos enganemos: é muito fácil destruir aquilo que tem sido possível alcançar.
Uma nota sobre a questão específica da integração absoluta das matérias florestais no Ministério do Ambiente e Ação Climática. Pode entender-se que tal decisão radica na importância que as florestas assumem no processo de descarbonização da economia, enquanto sumidouros de CO2 por excelência. Em teoria até poderei estar de acordo. Na prática, conhecendo o enquadramento político e administrativo em causa (entenda-se, o Ministério do Ambiente, a APA e o ICNF), tenho as maiores desconfianças. O risco de as atividades económicas de base florestal (eminentemente privadas) virem a ser objeto de apropriação pública em prol de objetivos ambientais (sempre louváveis) sem as respetivas contrapartidas de carater económico, reduzindo drasticamente a sua competitividade é, a meu ver, muito significativo. Se assim acontecer, o contributo da floresta para a descarbonização será menor, e os seus custos económicos e sociais muito significativos.
Termino como comecei: a ideia é-me tão estranha e descabida que mantenho a secreta esperança que possa conter algum traço de genialidade que a minha compreensão limitada não atinge. A concretizar-se em toda a sua extensão, devemos todos preparar-nos para que, a curto-prazo, o Ministério da Agricultura dê lugar a uma simples secretaria de Estado do Ministério da Economia.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico