Os novos Watchmen mexem com coisas difíceis — racismo, polícia e fãs

Robert Redford é (mesmo) o Presidente dos EUA, Jeremy Irons é um milionário excêntrico e Regina King é a protagonista de uma das estreias mais satisfatórias do ano. É uma sequela? É um remix? Sem grandes spoilers, o comic dos anos 1980 voa para o presente.

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Em 1985, o mundo de Watchmen estava atemorizado pela Guerra Fria e por Richard Nixon. Os vigilantes mascarados daquela que se tornaria uma das novelas gráficas mais influentes de sempre falavam de medo, corrupção, trauma e paranóia nuclear. Trinta anos depois, Damon Lindelof e a HBO voltam a Watchmen atolados em 2019 até ao pescoço. A nova série televisiva não decalca os comics, remistura-os: “A nostalgia é perigosa. É tóxica”, disse o criador da série ao site Vulture. Ao som de Trent Reznor e Atticus Ross, de Future ou dos Beastie Boys, os Watchmen do século XXI arriscam tudo para expor o racismo sistémico. Diz quem já viu que é uma aposta ganha. Chega esta segunda-feira à HBO Portugal.

“Sabemos que fizemos algo potencialmente perigoso e perturbador”, admitiu Damon Lindelof em entrevista ao New York Times. Na nova Watchmen há muitos estereótipos sociais invertidos entre negros e brancos, polícias e cidadãos, homens e mulheres, e espaço para uma reflexão sobre os males que um governo progressista, anti-armas e anti-racista pode não conseguir combater. Esta história violenta passa-se agora em Tulsa, mas inicialmente o espectador dá por si num terreno desconhecido, vizinho do desconcerto e da desorientação. E isso já faz parte do efeito Watchmen.

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A milícia supremacista branca HBO

A outra parte decorre do protagonismo de Regina King — uma mulher, uma mulher negra para quem a ideia de milícias de extrema-direita não é ficção especulativa. “Na minha comunidade falamos disso a toda a hora, porque o vivemos, geração após geração”, disse a actriz ao Guardian.

“Perfeita”, “deslumbrante”, “audaciosa”. No meio de tanta ficção televisiva, Watchmen, que se estreou domingo na HBO americana, é destacada de forma tão entusiástica pela crítica mais reputada (citados no início deste parágrafo estão a BBC, Alan Sepinwall na Rolling Stone e James Poniewozik no New York Times) também por se mostrar imune à fadiga dos remakes e à sobrelotação de super-heróis.

Os Watchmen da BD publicada entre 1986 e 1987 por Alan Moore e Dave Gibbons na DC Comics já eram uma visão “suja” das histórias de super-heróis (de resto, só um dos protagonistas mascarados tinha “superpoderes”). Mas a série que agora se estreia, um dos pratos principais do Outono da HBO, não refaz a BD quadro a quadro como o filme homónimo de Zach Snyder em 2009. “Percebi que [mesmo que fizesse] a minha melhor versão do trabalho de mestre de Alan e Dave, não passaria de uma banda de covers”, confessou Lindelof ao Vulture. Poucos vigilantes originais, pessoas comuns mascaradas que agem à margem do que consideram ser as falhas da lei, regressam para esta série.

Na versão de Lindelof, Robert Redford é o Presidente dos Estados Unidos e paga indemnizações pela escravatura e outros crimes de ódio (as “reparations” tornam-se “redfordations”) e o crítico literário e historiador Henry Louis Gates é o secretário do Tesouro. Poderia ser a América em convalescença, mas não. A infecção da supremacia branca não regrediu. “Inegavelmente, a raça e o policiamento” são o equivalente ao terror nuclear dos anos 1980 no país, defendeu o criador da série num encontro com a imprensa americana em Julho. Em nove episódios, o autor propõe-se a refundar a mitologia Watchmen como um novo comentário sobre a história dos EUA.

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Regina King em Watchmen HBO

O seu ponto de partida foi um famoso ensaio do escritor e jornalista afro-americano Ta-Nehisi Coates em que soube pela primeira vez do massacre de Tulsa, em 1921. “Tulsa pareceu-me Krypton. Pareceu-me a destruição de um mundo. Senti que aquela utopia pacífica onde pessoas inteligentes tinham construído um lugar seguro foi destruída de um dia para o outro. E fiquei a pensar: ‘a ideia é esta’”, contou Lindelof ao New York Times. Mesmo não sabendo se devia ser ele, um homem branco, a contar essa história.

Regina King responde-lhe, na mesma entrevista, que ele é americano, e uma testemunha válida. “O Klan usa máscaras, mas por que é que [os seus membros] nunca são os vilões de uma história de super-heróis?”, questionou-se Lindelof.

Uma tragédia americana

Watchmen começa outra vez com uma tragédia americana. Não, não morreu um comediante numa noite de Nova Iorque. Em 1921, dezenas de negros foram linchados e outros milhares viram-se agredidos na cidade de Tulsa, a “Wall Street negra”. O ataque, chocante, deu-se nas ruas e até por via aérea.

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Looking Glass e Sister Night em Watchmen HBO

Não é uma distopia, nem um passado alternativo: é pura história dos EUA. O acontecimento, real, alinha-se na série com a “Noite Branca”, esta sim uma ficção, em que um raide da Sétima Kavalaria (“são o [Ku Klux] Klan com máscaras diferentes”, descreve um novo vigilante) assassina polícias e seus familiares na mesma cidade do Oklahoma. As máscaras que usam são as de Rorschach, uma das várias menções à BD original; os polícias trazem máscaras amarelo-Watchmen; há novos vigilantes mascarados, como a Sister Night de Regina King, uma freira com terço e hábitos perigosos. 

O que aconteceu em 1985 no comic, lula gigante incluída, faz parte do passado assumido deste Watchmen presente, que recupera alguns dos seus rostos  Jeremy Irons é uma versão deliciosamente delirante de um deles. Há elementos estruturais comuns ao original e a reflexão sobre a questão racial e o agenciamento das mulheres deste mundo encaixam-se neles, compondo uma tapeçaria narrativa com diferentes tempos, tons e velocidades e com sequências de acção dignas de cinema. Dave Gibbons é consultor da série. Alan Moore, cáustico e excêntrico, recusou sequer ter o nome nos créditos.

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Jeremy Irons em Watchmen HBO

A série dá um epílogo a alguns heróis que há anos acompanham os leitores. O autor está consciente dos riscos que correu, especialmente porque Watchmen tem décadas de fãs além de um potencial de espectadores neófitos. “Aqueles 12 livros originais [compilados posteriormente numa novela gráfica] são o nosso Velho Testamento. Quando o Novo Testamento surgiu, não apagou o que surgiu antes”, explicava Lindelof numa carta aberta sobre a série publicada no Instagram já em Maio de 2018 (os comentários são a habitual mistura de fãs entusiasmados e fãs irritados).

Watchmen é também fruto do encontro entre o canal que em 2017 planeou a série Confederate, sobre uma América em que o Sul mantinha a escravatura (o projecto gerou tantas críticas online que a cancelaram), e Damon Lindelof, um dos nomes incontornáveis da televisão e do cinema pop do século XXI (Perdidos, The Leftovers, guiões de Além da Escuridão: Star Trek e Prometheus). Há uma década, Lindelof foi vítima das reacções virulentas nas redes sociais por causa do final de Perdidos. Agora, promete que no final dos nove episódios de Watchmen não haverá pontas soltas e até recomenda a Internet como ferramenta para ajudar os espectadores a irem mais fundo.

A certa altura de um dos seis episódios que o PÚBLICO já viu, uma personagem cospe: “Por favor não me trate como se eu fosse uma espécie de... fã”. Porque no mundo fictício de Watchmen também há uma série a estrear-se, American Hero Story: Minutemen, e “o New York Times já lhe chama o acontecimento televisivo do milénio”, garante a publicidade. É também por reflectir os padrões de consumo dos dias de hoje que Watchmen é uma série tão de 2019.

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Watchmen HBO

Como é que se garante que este novo mundo em que Dr. Manhattan continua em Marte e o Vietname é o 51.º estado dos EUA é uma digna sequela de Watchmen? Na era da televisão serializada, e à imagem do que acontecia em Twin Peaks: O Regresso, por exemplo, há um episódio-chave, o oitavo: neste caso, é o sexto. Uma das frases mais populares desta história é “who watches the watchmen?” — quem vigia os vigilantes? Nos tempos audiovisuais que correm, experimentar uma série e voltar a ela significa muito. “Quem está a ver Watchmen?” Este é um convite à partilha de mais uma série, e ainda por cima pode fazer-se uma promessa ao estilo de um Paul Thomas Anderson surrealista: haverá sangue, mas também haverá lulas.