Museus, as narrativas sobre o passado e a falta de meios
Para mudar o discurso, é mesmo necessário investir nos museus, trabalhar, ir a arquivos, estudar peças e criar exposições, não basta apenas gritar: descolonizar os museus!
Há uns dias fui com um dos meus filhos ao cinema. Apenas havia um filme para crianças disponível nesse dia, pelo que fomos “obrigados” a ver Uma Aventura nos Mares, que pretende descrever, para crianças, a primeira viagem de circum-navegação do mundo, iniciada por Fernão de Magalhães e terminada por Juan Sebastián Elcano. Enquanto historiador de formação, já ia preparado para ver alguns erros e incoerências cronológicas típicas dos filmes históricos para crianças (erros de caracterização de vestes e objetos), também esperava algum engrandecimento da figura de Elcano (enquanto navegante), tendo em conta a origem do filme; contudo, confesso, não estava preparado para uma narrativa que visava heroicizar Elcano, recorrendo a várias “informações” que não estão historicamente documentadas. Bem sei que se trata de um filme infantil, mas as crianças absorvem tudo como esponjas e, caso a experiência seja positiva, tendem a reter ainda mais as “verdades” adquiridas; estas entranham-se na memória. Isto levou-me a refletir sobre o papel do historiador nas democracias contemporâneas e sobre as narrativas e a difusão da história. Dias antes, em conversa com Ruben Smit, do Reinwardt Academy, sobre um tema bem mais sério: a personagem do “Black Pete” na tradição do Natal na Holanda e as suas claras alusões racistas, refletimos sobre as dificuldades em acabar com uma tradição que não faz sentido nos tempos atuais, mas que ainda é muito relevante para muitos holandeses, sobretudo porque, para uma geração como a do Ruben, essa personagem estava ligada a momentos felizes da infância e à entrega de presentes. Nunca me esqueço de uma frase que ouvi de Tzvetan Todorov no Chile, em 2012: “a memória não se opõe necessariamente ao esquecimento […] é circunstancial e pessoal, coletiva quando construída socialmente”. Poderia, assim, assumir-se que a memória é maleável, mas a história também o pode ser, já a História (ciência) não o deve ser, ainda que, a forma como a difundimos é inexoravelmente moldável.
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Há uns dias fui com um dos meus filhos ao cinema. Apenas havia um filme para crianças disponível nesse dia, pelo que fomos “obrigados” a ver Uma Aventura nos Mares, que pretende descrever, para crianças, a primeira viagem de circum-navegação do mundo, iniciada por Fernão de Magalhães e terminada por Juan Sebastián Elcano. Enquanto historiador de formação, já ia preparado para ver alguns erros e incoerências cronológicas típicas dos filmes históricos para crianças (erros de caracterização de vestes e objetos), também esperava algum engrandecimento da figura de Elcano (enquanto navegante), tendo em conta a origem do filme; contudo, confesso, não estava preparado para uma narrativa que visava heroicizar Elcano, recorrendo a várias “informações” que não estão historicamente documentadas. Bem sei que se trata de um filme infantil, mas as crianças absorvem tudo como esponjas e, caso a experiência seja positiva, tendem a reter ainda mais as “verdades” adquiridas; estas entranham-se na memória. Isto levou-me a refletir sobre o papel do historiador nas democracias contemporâneas e sobre as narrativas e a difusão da história. Dias antes, em conversa com Ruben Smit, do Reinwardt Academy, sobre um tema bem mais sério: a personagem do “Black Pete” na tradição do Natal na Holanda e as suas claras alusões racistas, refletimos sobre as dificuldades em acabar com uma tradição que não faz sentido nos tempos atuais, mas que ainda é muito relevante para muitos holandeses, sobretudo porque, para uma geração como a do Ruben, essa personagem estava ligada a momentos felizes da infância e à entrega de presentes. Nunca me esqueço de uma frase que ouvi de Tzvetan Todorov no Chile, em 2012: “a memória não se opõe necessariamente ao esquecimento […] é circunstancial e pessoal, coletiva quando construída socialmente”. Poderia, assim, assumir-se que a memória é maleável, mas a história também o pode ser, já a História (ciência) não o deve ser, ainda que, a forma como a difundimos é inexoravelmente moldável.
Eric Hobsbawm editou, em conjunto com Terrence Ranger (1983), um livro muito interessante, no qual nos fala da invenção da tradição – eu tenho insistido várias vezes nos meus textos no PÚBLICO sobre os perigos de confundir patrimónios e tradições com a análise histórica – para Hobsbawm, inventar tradições é: “[…] essencialmente um processo de formalização e ritualização, caracterizado pela referência ao passado, ainda que apenas pela imposição da repetição” e de tanto repetir, por tempos e tempos, os factos tornam-se verdadeiros.
Os museus, enquanto espaços de difusão histórica, têm também um problema narrativo, e, por vezes, um discurso inconsciente do facto de que o modo como constroem a narrativa sobre o passado do património material que guardam e expõem está inexoravelmente ligado a uma construção inserida num determinado contexto e tempo presente. Julio Aróstegui insta-nos a refletir sobre isso, em La investigación histórica: teoría y método (1995): “O historiador ‘escreve’ a História, mas também deve teorizar sobre a mesma, isto é, refletir e descobrir fundamentos gerais a respeito do histórico e, além disso, sobre o alcance explicativo do seu próprio trabalho”.
Na atualidade, o “modelo holandês” parece ter grande influência em certos “pensadores” dos museus no nosso país. Wayne Modest, um “culturamaterialista” como eu, foi há pouco tempo entrevistado pelo PÚBLICO e meses antes (em março) foi o convidado estrela num evento conjunto do ICS com a Acesso Cultura, contudo, em meu entender, o “modelo holandês” tem sido mal interpretado, usado para o confronto, quando na realidade é sobretudo um modelo de diálogo (intercultural e intergeracional), um modelo de transição narrativa do clássico museu histórico europeu para a contemporaneidade. Wayne Modest coordena um texto muito interessante denominado Words Matter – publicado em conjunto por vários museus holandeses com coleções de carácter etnográfico e colonial que formam o Nationaal Museum van Wereldculturen (Museu Nacional das Culturas do Mundo) – que visa precisamente uma reescrita da narrativa presente nos museus desse país. Veja-se o que escrevi sobre esta publicação em fevereiro. Outro exemplo interessante foi apresentado pelo já citado Ruben Smit na Summer School do Instituto de História Contemporânea (IHC), dando-nos a conhecer a intervenção realizada na Mauritshuis (mais conhecida como a casa-museu que alberga o quadro da “rapariga com brinco de pérola"), onde foram feitas várias tabelas de texto com distintas visões (de especialistas dos vários quadrantes: historiográficos e políticos) sobre a figura de João Maurício de Nassau, o governador do Brasil holandês, um herói nacional mas também um dos principais impulsionadores do esclavagismo na Holanda. Este último modelo de confronto, mas ao mesmo tempo dialogante, interessa-me bastante, sobretudo em museus históricos. Uma História que cruza as visões dos vencedores com as dos vencidos, a dos colonos com as dos colonizados, como nos indica também Fatima Harrak, que recentemente também passou por Lisboa. Creio que os museus são espaços ótimos para o contraste, para sintetizar momentos, confrontos e aproximações através dos objetos, da montagem cénica e da linguagem concisa. A sociedade percebe essa possibilidade do museu, os políticos do século XXI entendem-nos como os novos monumentos comemorativos de vitórias, uma obra que perdura e que não é mal vista na contemporaneidade, ao contrário das efígies comemorativas. Mas pode Portugal seguir ipsis verbis o “modelo holandês”? Convém ter em conta que existem algumas diferenças: o investimento público e privado em museus não é comparável com o caso português, também não existe, no nosso país, capacidade para oferecer lugares competitivos, em museus, que possam atrair técnicos capacitados estrangeiros, como o próprio Wayne Modest e, igualmente, não conseguimos formar e integrar devidamente, nos mesmos, jovens descendentes de imigrantes, como, por exemplo, a Imara Limon.
É importante receber comentários de gente de fora dos museus, estes não devem viver centrados em si mesmos, contudo, quem está de fora nem sempre consegue ter uma visão integral sobre o tema. Sinto que se tem criado, na opinião pública, uma impressão de que os museus portugueses se encontram numa etapa medieval. O interesse gerado pela criação de um museu sobre os Descobrimentos e outro sobre Salazar direcionou os holofotes para os museus, revelando muitos dos seus defeitos. Em seguida, levantaram-se várias vozes, deram-se vários modelos de “bons museus” estrangeiros, colocou-se em causa a superestrutura diretiva dos museus nacionais, propuseram-se novos museus, mandaram-se fechar outros.
A ideia de “medievalismo” dos museus portugueses não é inteiramente falsa, no entanto, o foco da crítica tem sido, em meu entender, mal direcionado. Percebemos todos, no rescaldo da Summer School do IHC, sobre Museus, Coleções e Património, que existia um claro problema narrativo na generalidade dos museus nacionais e que estes não se souberam, ainda, integrar no século XXI. O desconhecimento (ou desentendimento) em relação aos graves problemas financeiros que vivem os museus nacionais leva a que, por vezes, quem está de fora ataque os seus funcionários e os responsabilize pelo discurso antiquado, racista e colonial dos museus onde trabalham; mas sem dinheiro, com falta de pessoal, com técnicos envelhecidos e sem vontade de novas ideias, é difícil fazer alguma coisa. Apesar de tudo, existem, em Portugal, vários colegas que, através dos serviços educativos e muitas vezes ignorando as diretrizes, vão alterando os discursos, desconstruindo dinamicamente a expografia vigente.
Tenho a impressão de que no Ministério da Cultura estão atentos a essa situação identificado este problema do discurso, mas também sabem que essa transformação só pode ser feita através de um forte investimento que traga novas pessoas para os museus (também para reescrever conteúdos) e que permita financiar as alterações museográficas. Enfim, para mudar o discurso, é mesmo necessário investir nos museus, trabalhar, ir a arquivos, estudar peças e criar exposições, não basta apenas gritar: descolonizar os museus!
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico