Saúde mental infantil – uma quase indiferença de décadas
Este é um desafio claro para a próxima legislatura: Portugal não pode continuar a desperdiçar a oportunidade de reparar um erro que é simultaneamente científico, moral e de direitos humanos das nossas crianças e adolescentes, nomeadamente das mais vulneráveis.
Na sociedade medieval o sentimento da infância não existia. Não quer isto dizer que as crianças fossem negligenciadas ou abandonadas, mas apenas que a criança não era reconhecida na sua especificidade e individualidade.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Na sociedade medieval o sentimento da infância não existia. Não quer isto dizer que as crianças fossem negligenciadas ou abandonadas, mas apenas que a criança não era reconhecida na sua especificidade e individualidade.
Podemos dizer que havia uma ‘quase indiferença’, patente, por exemplo, na forma como era vivido o luto de um filho, espelhada aqui nas palavras de Montaigne: “Perdi dois ou três filhos na ama, não sem o lamento, mas sem o desgosto.”
Um longo caminho foi percorrido desde então. A saúde mental da infância e da adolescência tem em Portugal alicerces sólidos.
A psiquiatria infantil ou pedopsiquiatria nasceu nos anos 50, substituindo a neuropsiquiatria infantil. Adotou-se na altura uma atitude inovadora, de saúde mental, que defendia uma abordagem preventiva e global da saúde da criança e que já então valorizava o trabalho em equipas multidisciplinares, a ligação intersectorial e a formação de pessoal técnico competente.
Atualmente existe um modelo organizacional estruturado dos serviços hospitalares de Psiquiatria e Saúde Mental da Infância e da Adolescência.
O Plano Nacional de Saúde Mental 2007-2016 foi um marco importante em todo este percurso – identificou as principais fragilidades organizativas e estruturais e definiu normas orientadoras para os serviços de saúde mental.
Os cuidados devem ser prestados por equipas multidisciplinares, em que se privilegie uma abordagem integrada da criança/adolescente/família e se valorizem as intervenções em articulação com a comunidade, nomeadamente o trabalho de proximidade com os Cuidados de Saúde Primários (CSP) e escolas.
É certo que na última década assistimos a um aumento significativo destes serviços e unidades hospitalares, do número de camas de internamento e do número de médicos especialistas. Mas não basta.
Ao nível hospitalar, as carências em recursos humanos continuam a ser uma das maiores fragilidades das equipas, sendo a multidisciplinaridade quase inexistente em muitas unidades e serviços.
Nas escolas e nos CSP, a falta de formação específica dos profissionais dificulta a identificação atempada de muitas situações e a capacidade de intervir eficazmente. O investimento na formação de técnicos de saúde mental e de outros profissionais da saúde, da educação, do sector social e da justiça tem necessariamente de ser um dos vectores a investir – sabemos que sem formação não há mudança.
A saúde mental deveria ser uma prioridade da saúde pública e transversal a todas as políticas. As Experiências Adversas da Infância, ACE's na literatura internacional, que incluem vários tipos de abuso e negligência, e o seu brutal impacto na redução do tempo médio de vida são já reconhecidas desde os anos oitenta do século XX. Conhecem-se fatores de risco e de proteção e é consensual que a política para a infância e adolescência deve assentar numa cultura de prevenção. Porém, esta tem-se revelado outra das áreas em falha – as intervenções de promoção e prevenção têm sido pontuais e a maioria não é elaborada a partir de programas validados.
Os estudos epidemiológicos não deixam dúvidas quanto à prevalência das perturbações psiquiátricas nesta faixa etária. A OMS estima que 20% das crianças e adolescentes apresentam pelo menos uma perturbação mental antes de atingir os 18 anos e que, mesmo em países desenvolvidos, apenas 1/3 das crianças com problemas significativos recebem tratamento.
Sabe-se que muitas patologias são persistentes e podem ter consequências graves, duradouras, com impacto significativo na capacidade de inserção dos indivíduos – cerca de 50% das patologias psiquiátricas de evolução prolongada começam antes dos 14 anos e 75% antes dos 24 anos. É fácil entender que o peso económico e social que determinam vai muito para além do peso económico direto inerente aos custos para os Serviços de Saúde.
Mas mais relevante ainda é o conhecimento que a intervenção em idades mais precoces pode prevenir ou reduzir a probabilidade de incapacidade a longo prazo e que esta é a ação com melhor relação custo/eficácia para contrariar o aumento contínuo dos problemas mentais.
Podemos então interrogar-nos sobre os motivos que levam a que a saúde mental da infância continue a ser tão pouco investida, ou tão desproporcionalmente investida, relativamente a outras áreas.
Temos a evidência científica internacional – ainda que não exista nenhum estudo epidemiológico nacional que determine a prevalência das perturbações psiquiátricas antes dos 18 anos – e sabemos os programas e intervenções que melhor resultam. O que falta para que possamos assistir a uma mudança de paradigma?
As palavras de Montaigne, escritas no século XVI, hoje chocam-nos.
Queremos acreditar que evoluímos muito e que as crianças são alvo de todo o nosso cuidado – preocupamo-nos com a sua saúde e educação, os sucessivos governos ratificam convenções, legislam sobre os seus direitos, criam organismos em sua defesa.
Quase nos fazem crer que a saúde mental das crianças e adolescentes é uma prioridade.
No entanto, quem conhece a realidade dos serviços de saúde mental da infância e adolescência e dos seus parceiros comunitários sabe que não é assim.
Ao longo das últimas décadas tem prevalecido, num certo sentido, uma ‘quase indiferença’ face a estas questões, que por estigma ou mera negligência continuam a ficar esquecidas.
Quando estamos a terminar mais uma legislatura, e apesar de alguns avanços entretanto ocorridos (nova rede de referenciação hospitalar, embrião de equipas comunitárias, financiamento de alguns programas de promoção e prevenção), temos de nos interrogar para quando a mudança necessária.
Este é um desafio claro para a próxima legislatura: Portugal não pode continuar a desperdiçar a oportunidade de reparar um erro que é simultaneamente científico, moral e de direitos humanos das nossas crianças e adolescentes, nomeadamente das mais vulneráveis.
Os autores escrevem segundo o novo Acordo Ortográfico