Morreu Harold Bloom, o polémico guardião do cânone ocidental
Autor de A Angústia da Influência (1973) e de O Cânone Ocidental (1994), era talvez o mais conhecido crítico literário em actividade, e também um dos mais polémicos. Tinha 89 anos e estava hospitalizado em New Haven, nos Estados Unidos. O português Fernando Pessoa era um dos seus eleitos.
Autor de alguns dos raros best-sellers que o ensaísmo literário produziu nas últimas décadas, incluindo O Cânone Ocidental (1994), Como Ler e Porquê (2000) ou Génio (2003), Harold Bloom morreu esta segunda-feira em New Haven, no estado americano do Connecticut, onde morava com a sua mulher, Jeanne Bloom, que confirmou o óbito ao jornal New York Times, lembrando que o marido dera a sua última aula na Universidade de Yale há apenas quatro dias, na última quinta-feira. Harold Bloom tinha 89 anos e era considerado um dos críticos mais célebres e mais influentes da segunda metade do século XX, tendo sido um feroz guardião do “cânone ocidental”.
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Autor de alguns dos raros best-sellers que o ensaísmo literário produziu nas últimas décadas, incluindo O Cânone Ocidental (1994), Como Ler e Porquê (2000) ou Génio (2003), Harold Bloom morreu esta segunda-feira em New Haven, no estado americano do Connecticut, onde morava com a sua mulher, Jeanne Bloom, que confirmou o óbito ao jornal New York Times, lembrando que o marido dera a sua última aula na Universidade de Yale há apenas quatro dias, na última quinta-feira. Harold Bloom tinha 89 anos e era considerado um dos críticos mais célebres e mais influentes da segunda metade do século XX, tendo sido um feroz guardião do “cânone ocidental”.
Leitor omnívoro e voraz – gabava-se de ler e absorver 400 páginas numa hora e de saber recitar de cor toda a poesia de Shakespeare, o Paraíso Perdido de Milton e ainda a obra completa de William Blake –, Bloom foi também um dos mais polémicos críticos da sua geração, com a sua defesa intransigente daqueles que via como os grandes criadores da tradição literária ocidental, cujo estatuto via ameaçado pelos sectores académicos a que chamava a “escola do ressentimento”, na qual incluía o marxismo, o multiculturalismo ou o feminismo.
Na sua vastíssima bibliografia, que abarca não apenas os estudos literários, mas também várias obras dedicadas a temas religiosos, o livro em que primeiro estrutura a sua visão um tanto bélica (e freudiana) da criação literária é A Angústia da Influência: Uma Teoria da Poesia (1973) – editado em Portugal pela Cotovia, com tradução de Miguel Tamen –, no qual Bloom inventaria os diversos modos pelos quais os poetas “fortes”, para usar a sua terminologia, lidam com o impacto exercido pelos seus precursores: do encobrimento da dívida a uma estratégia mais perversa, através da qual os textos do poeta posterior nos devolvem o poeta anterior como se este, na verdade, fosse o influenciado.
Mas o seu livro mais lido e discutido foi seguramente O Cânone Ocidental (edição portuguesa da Temas e Debates com tradução e de Manuel Frias Martins), uma visão singular da literatura europeia e americana focada nas obras de 26 escritores, com destaque para aquele que, na sua perspectiva, é o centro absoluto do cânone: William Shakespeare. Uma parte substancial da polémica teve porém menos a ver com a escolha destes 26 autores, entre os quais figura Fernando Pessoa, do que com a discussão das presenças e ausências nos mais de 800 que o autor inventaria nos anexos, onde são incluídos outros portugueses.
Bloom dedicou ao dramaturgo inglês o gigantesco volume Shakespeare: A Invenção do Humano. “Shakespeare é Deus”, escreve nesse livro, argumentando que as suas personagens são tão reais como pessoas de carne e osso e contribuíram para moldar a nossa própria percepção daquilo que significa ser humano.
De resto, para o judeu Bloom, o próprio Deus do Velho Testamento é uma personagem literária, criada por um autor que os estudos bíblicos designam apenas por “J” e que o crítico, aceitando a sugestão de um seu leitor, admite que possa ser a mãe de Salomão, Betsabé.
Nascido em pleno Bronx, em Nova Iorque, de uma família judaica proletária com origens na Europa de Leste que o educou no judaísmo ortodoxo (o pai era natural de Odessa, na actual Ucrânia, e a mãe dos arredores de Brest-Litovsk, hoje território bielorrusso), Bloom teve como primeira língua o iídiche dos seus antepassados e só começou a falar inglês aos seis anos, o que não o impediu de ter uma carreira académica fulgurante nas universidades de Cornell e de Yale. Numa entrevista dada ao PÚBLICO em 2001, quando esteve em Portugal para participar no programa O Futuro do Futuro do Porto 2001 – Capital Europeia da Cultura, contava: “Cresci no Bronx e não falava inglês, só iídiche. Por isso é que a minha pronúncia é esquisita. Apaixonei-me violentamente pela poesia quando era ainda muito novo. Aos seis anos estava a decorar Blake e Hart Crane, os primeiros poetas que realmente amei. E pouco depois comecei a ler Shakespeare e Milton. Aos dez, encantei-me com os Pickwick Papers de Dickens.”
Famoso por recitar poemas enormes de cor, conhecido também por excentricidades como tratar todos os seus alunos e alunas por “dear” (querido/a) e ocasionalmente beijá-los no alto da cabeça, gostava de ser comparado ao grande crítico literário inglês do século XVIII, Samuel Johnson, com quem partilhava, assinala o obituário do New York Times, a erudição, a rotundidade e as opiniões cáusticas. Tão prolífico como este seu precursor, Bloom continuou a publicar praticamente até ao final da vida. Já este ano saíram mais dois livros, Macbeth: A Dagger of the Mind e Possessed by Memory: The Inward Light of Criticism, e a sua mulher adianta que há mais um no prelo, a ser publicado em data ainda não definida pela Universidade de Yale.
E se a academia torce o nariz tanto às opiniões como à popularidade de Bloom, que crê interligadas, o crítico responde na mesma moeda. Na já referida entrevista ao PÚBLICO, diz: “Aí por 1990 cheguei à conclusão de que não valia a pena escrever para um único académico. (…) O que me dá forças para viajar tanto, nesta idade, é que, em todo o lado onde falo, me aparecem verdadeiros leitores. São brancos, negros e asiáticos, são homossexuais e heterossexuais, são velhos e novos, ricos e pobres. São leitores. Pessoas completamente indiferentes a todo esse lixo que se ensina nas universidades”.
Entre os autores portugueses que mais o interessaram contam-se os óbvios Camões e Pessoa, mas também José Saramago, de quem dizia em Génio, publicado ainda em vida do autor de Memorial do Convento, ser “o mais dotado ficcionista vivo no mundo”. “Quando leio Saramago sinto-me como Ulisses tentando prender Proteu, o deus metamórfico do oceano; ele passa o tempo a fugir”, declarara em 2001 numa conferência sobre o autor na Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, em Lisboa.
Quanto a Pessoa, na entrevista ao PÚBLICO confessava não apreciar Alberto Caeiro, e explicava por que é que o poeta dos heterónimos não conseguira emergir vitorioso da sua luta criativa com Camões: “Como é que se pode ganhar uma batalha a um sujeito como aquele? Um homem só com um olho, que matou outro numa rixa de rua, que sobreviveu a um naufrágio, um enorme poeta lírico. Pessoa é um poeta excelente e uma pessoa fascinante e estranha, mas creio que, para ele, foi muito embaraçoso que existisse um poeta como Camões em língua portuguesa. Virou-se para Whitman para escapar a Camões, mas também Whitman se revelou forte de mais para Álvaro de Campos. E eu adoro Campos.”