O mito é o mito e Medeia é Medeia, mas o horror fica na sombra
Companhia Escola da Noite leva ao palco Desmesura, com texto de Hélia Correia, a partir da peça de Eurípides.
De Medeia, sabemos que matou os filhos. É uma informação prévia que os encenadores de Desmesura, o mais recente trabalho da companhia Escola da Noite, concedem que o espectador tenha mesmo antes de entrar na sala do Teatro da Cerca de São Bernardo, em Coimbra.
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De Medeia, sabemos que matou os filhos. É uma informação prévia que os encenadores de Desmesura, o mais recente trabalho da companhia Escola da Noite, concedem que o espectador tenha mesmo antes de entrar na sala do Teatro da Cerca de São Bernardo, em Coimbra.
A peça escrita por Eurípides, na Grécia antiga, foi trabalhada por Hélia Correia, que lhe oferece um outro ângulo em Desmesura. Exercícios com Medeia, o texto que serve de base à encenação que a companhia de Coimbra estreou na quinta-feira, dia 10, e que fica em palco até dia 27 deste mês.
A versão da escritora portuguesa coloca a tragédia num espaço doméstico. Tudo o que vemos tem lugar na cozinha, habitada pelas três escravas acrescentadas à história por Hélia Correia. Apesar de serem propostos novos elementos, Desmesura continua a ser a história de Medeia, a mulher que, movida pelo ciúme e com desejo de vingança de Jasão, o marido infiel, passa à faca os filhos que dele tinha. A existência das escravas, “faz com que a Medeia e o Jasão sejam caracterizados através delas”, explica a co-encenadora Sofia Lobo. A sua presença é muito importante, “pelas questões que coloca”, acrescenta, nomeadamente as relações de poder.
A preocupação da peça da Escola da Noite não é actualizar Eurípides, tal como o texto de Hélia Correia não tem tal pretensão, asseguram os três co-encenadores em conversa com o PÚBLICO. A direcção tripartida da peça explica-se com uma sequência de imprevistos. O previsto era que Sofia Lobo se ocupasse exclusivamente da encenação, com o papel de Medeia a ser assumido por Maria João Robalo, actriz da companhia que sofreu uma grave queda em Julho, que obrigou a internamento nos cuidados intensivos dos Hospitais da Universidade de Coimbra. O acidente abalou a estrutura e obrigou a redesenhar o plano. Maria João apenas teve alta hospitalar no dia 7 de Outubro.
“A verdade era que já tínhamos contratado as outras três actrizes”, que acabaram por sugerir que fosse Sofia Lobo a dar corpo à mulher do mito, conta a encenadora. Essa acumulação de funções levou a que Igor Lebreaud, também actor da Escola da Noite, se tenha juntado à direcção de cena, abdicando do papel de Jasão — que ficou nas mãos de Miguel Magalhães. De Salvador da Bahia veio Jarbas Bittencourt, que inicialmente seria o director musical e acabou por ter uma intervenção maior. “Eles foram muito generosos em aceitar este director musical espaçoso”, resume o próprio Bittencourt.
O cair da chuva é um dos sons que acompanham parte de Desmesura, contrastando com um borralho de ténue incandescência, ao fundo da cozinha. O povo responsabiliza Medeia, estrangeira, pela pluviosidade ininterrupta, o que demonstra uma das dicotomias que a peça trabalha, refere Igor Lebreaud: tensões entre “uma cultura civilizada e uma supostamente incivilizada ou entre o racional e o irracional”.
Irracionalidade que o público vê formar-se, mas da qual não vê as consequências. Nas poucas didascálias do texto, Hélia Correia escreve que “as crianças nunca serão mais do que uma sombra”, nota Sofia Lobo. No entanto, não sentiu sequer necessidade nem desse elemento. “O mito é o mito e Medeia é Medeia, mas esta peça é um bocado mais seca. O poder está na palavra e na decisão tomada”, refere.
O horror fica para lá das margens escuras do palco e a violência é desviada dos olhos dos espectadores para as palavras. Estas dão conta de um processo que vai aproximando Medeia de uma queda no abismo. “O texto nunca diz ‘Medeia mata os filhos’. Quando percebemos isso, entendemos que não era esse o foco da Hélia Correia”, nota Lebreaud. E Bittencourt acrescenta: “A palavra é tão forte que me informa da decisão e do acto ao mesmo tempo”.
Perto do fim, terminado o monólogo do desespero, Medeia sai de cena. A decisão está tomada e nem a advertência de que será lembrada pelo horror a demoverá. A luz apaga-se e a sala regressa à escuridão.