Viver numa carcaça política
Os próximos quatro anos não vão ser fáceis, mas não estamos condenados a regressar ao passado, como as velhas ideias políticas disfarças de novas nos querem fazer acreditar.
Há 20 anos não faltava quem projectasse que o crescimento económico seria ilimitado, os recursos naturais infinitos, as desigualdades sociais atenuadas e que a tecnologia nos libertaria do trabalho. Depois aconteceu a crise de 2008 e todos esses horizontes de futuro foram sendo apagados.
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Há 20 anos não faltava quem projectasse que o crescimento económico seria ilimitado, os recursos naturais infinitos, as desigualdades sociais atenuadas e que a tecnologia nos libertaria do trabalho. Depois aconteceu a crise de 2008 e todos esses horizontes de futuro foram sendo apagados.
Com a economia estagnada, ou com um crescimento residual, e toda a lógica expansionista a exibir limites, a dinâmica do capitalismo tornou-se destrutiva e a percepção do futuro transformou-se. Como diz o filósofo italiano Franco Berardi: “Estamos a viver dentro do cadáver do capitalismo e viver numa carcaça não é saudável para os nossos corpos e mentes.”
A meritocracia, tão propagada por estes dias, faz sentido até certo ponto em cenários de grande crescimento económico. Mas o que fazer quando ele não existe? Poder-se-ia imaginar que o crescimento, cada vez mais residual, activasse outros modelos em que a redistribuição da riqueza pudesse dar origem a uma nova era e a um renovado processo de solidariedade. Mas não. Em vez de refazermos o sistema económico a favor de uma maior justiça social, regressamos ao passado. E lá voltam, à direita, nacionalismos, fascismos, racismos, dinâmicas ultraliberais e redes protectoras dos seus próprios interesses, enquanto à esquerda reage-se e tenta-se preservar aquilo que tem sido posto em causa, mas navega-se à vista, também não havendo propriamente uma perspectiva de futuro.
Vivemos na época das reformulações, reciclagens ou recuperações. Umas vezes parece querer-se retornar a um passado longínquo mitificado. Outras a uma memória recente. Em Portugal, as eleições do fim-de-semana passado puseram em perspectiva todos esses impasses. O PS ganhou, como era expectável, depois de ter conseguido criar, com os parceiros de coligação, um ambiente respirável, apesar de a ideia de oásis económico não ter convencido quem continua com existência precária.
E esse é o principal traço. Como se sai daqui? O PS, em conjunto com os seus parceiros de esquerda circunstanciais, irá certamente continuar o seu caminho, mas com um espaço de manobra limitado por restrições e políticas neoliberais europeias. As novidades provêm da direita e ambas reflectem esta época conturbada de remakes em que vivemos, com o Chega a acenar com o medo, o ressentimento, o nacionalismo, o autoritarismo, o justicialismo e a exclusão de minorias – tudo ideias muito novas que têm atrás de si um rasto de destruição com séculos –, enquanto o Iniciativa Liberal (IL) diz que precisamos de mais e melhor liberalismo.
O que não deixa de ser paradoxal, porque se existe traço comum das políticas em Portugal, à direita ou até à esquerda, é o neoliberalismo. Há décadas que se aplicam as ideias (privatizações, liberalização das leis do trabalho, liberalização do sistema financeiro) e vingam os conceitos (ultraliberalismo, individualismo, competição, produtivismo) que o IL defende. Foram essas ideias que nos enlodaram. É irónico que culpem a falta de autonomia económica ou o excesso de intervenção estatal. O seu horizonte parece ser voltar ilusoriamente a 2007. E quem não concorda com o seu ideário é porque apreciaria viver em Cuba ou na Venezuela.
É a lógica do preto e branco. Há olhos que não conseguem ver além. E era preciso que se vislumbrassem novas políticas terapêuticas. Por agora, é o que há. A travessia dos próximos anos será difícil, mas há muitas coisas que se podem fazer. Olhar de frente para a habitação. Não deixar que o Serviço Nacional de Saúde se deteriore. Exigir melhores transportes públicos e uma aposta na rede ferroviária. Reduzir a precariedade e as desigualdades. E acima de tudo: não deixar que a democracia se degrade.