A preocupação com André Ventura
Há problemas graves no nosso sistema político, na nossa democracia. E o Chega de André Ventura nem sequer chega ao pódio.
Nota prévia: nas últimas eleições europeias votei no Livre de Rui Tavares e nestas eleições legislativas votei no PS de António Costa. Nunca, na minha vida, votei num partido de direita.
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Nota prévia: nas últimas eleições europeias votei no Livre de Rui Tavares e nestas eleições legislativas votei no PS de António Costa. Nunca, na minha vida, votei num partido de direita.
Dito isto, fiquei satisfeito com a chegada de três novos partidos à Assembleia da República – Livre, Iniciativa Liberal e o Chega. E fico contente por existir uma maior representatividade de ideias, mesmo não concordando com muitas delas. E até concordo com a manutenção do PAN na Assembleia, apesar de ser extremamente crítico das suas posições anti-científicas.
Assim, não posso deixar de constatar a minha surpresa pelo pânico moral que surgiu pela chegada do André Ventura ao Parlamento, em representação do Chega. Como se fosse o fim da democracia. Numa democracia que convive há décadas com a extrema-esquerda, sem grandes pudores.
Por exemplo, o Partido Comunista acha que a definição do regime político da Coreia do Norte, se é ou não uma democracia, é uma questão de opiniões. Defende Nicolas Maduro, dizendo que foi eleito de forma democrática e a soberania da Venezuela deve ser respeitada, apesar de o povo estar a morrer à fome, sem acesso a cuidados de saúde e emigrando em massa (1,2). Apesar das eleições não terem sido livres nem justas, com vários países a não reconhecerem a legitimidade de Maduro (1, 2). O Partido Comunista é o partido que votou contra o pesar pelas mortes na praça chinesa de Tiananmen. É o partido que saúda a revolução cubana de Fidel Castro.
Também não deixa de ser interessante que o pânico moral não se estendeu ao Livre, um partido que se fez representar por Joacine Katar-Moreira, que interpretou as eleições como um “concurso de coitadinhos”, afirmando-se como a mais coitadinha dos candidatos. Katar trouxe para Portugal o identity politics americano. Representa o feminismo radical, que pede uma revolução cultural em todos os contextos sociais e económicos, contra a opressão do patriarcado (habitualmente representado pelo homem branco). Um discurso altamente polarizador, criador de “Trumps e Bolsonaros”, já que afasta uma grande parte do eleitorado na direção oposta a este radicalismo de esquerda. Toda a campanha de Katar circulou à volta do seu sexo, cor de pele, origem e da sua gaguez. Não foi culpa da comunicação social, foi opção política. Katar diz ser “revolucionário que uma mulher de origem africana e que não faz parte das elites seja candidata” e tenha agora entrado na Assembleia. Essa Assembleia das elites onde, na época pré-Katar, pelos vistos não existiam mulheres, negros, gagos e gente de origem humilde. Ou uma conjugação destas adjetivações.
Também convivemos bem com um dos partidos mais anti-científicos da nossa democracia (quase empatado com o PAN). O Bloco de Esquerda é um dos grandes proponentes das terapias alternativas (1,2,3,4), um dos principais demonizadores do glifosato (apesar de não ser cancerígeno), dos transgénicos (apesar de seguros e positivos para a saúde e ambiente), da “agricultura intensiva” e promotores do roubo que representa a agricultura biológica (1,2).
Aliás, toda a esquerda em Portugal e por esse mundo fora sofre de um paradoxo engraçado. Ao mesmo tempo que se mostram preocupados com as alterações climáticas, negam as vantagens de algumas das melhores soluções para combater esse problema.
Mas qual o objetivo deste texto? É atacar a esquerda política? Não. Este texto pretende alertar para a necessidade de olharmos para os nossos próprios vieses. Para os nossos “telhados de vidro”. A histeria moralizadora a que neste momento assistimos com a eleição do André Ventura não é nada chocante quando olhamos para os restantes partidos da Assembleia de uma forma neutra, vemos as suas incongruências e, em alguns casos, as suas visões radicais do que deve ser a sociedade e a democracia.
“Grunho” é uma adjetivação habitualmente atribuída a apoiantes da extrema-direita em Portugal. Mas “grunhos” de esquerda não são menos perigosos que “grunhos” de direita. Expressam o mesmo nível de intolerância por ideias diferentes das suas, o mesmo nível de autoritarismo, a mesma motivação para evitar opiniões contrárias e a mesma tendência para ignorar evidência científica que contraria a sua ideologia.
Há problemas graves no nosso sistema político, na nossa democracia. E o Chega de André Ventura nem sequer chega ao pódio. O principal será o tribalismo político que tolda a racionalidade das pessoas, preferindo a sua ideologia à verdade.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico