A obsessão da Turquia com os curdos da Síria
Na óptica curda, o seu abandono pelos EUA às mãos da Turquia lembra feridas do passado.
1. Para um observador ocidental externo, o Médio Oriente é extraordinariamente difícil de entender. É um passado com tonalidades medievais, não se sabe muito bem surgido de onde, o qual irrompe, de forma violenta, num mundo pós-moderno dominado pela economia, mercado, comércio e tecnologia. Ao mesmo tempo, as causas usuais de conflitos no Ocidente pouco ou nada permitem perceber os acontecimentos. Os conflitos do Médio Oriente não seguem usualmente linhas ideológicas de esquerda e direita como na política ocidental. Quanto aos Estados da região, também não são normais Estados-Nação. Têm no seu interior uma multiplicidade de grupos étnicos e religiosos, por vezes em disputa violenta com o próprio Estado. As alianças e inimizades, políticas e militares, fazem-se, desfazem-se e refazem-se em inúmeros conflitos. Mais inteligíveis são os interesses das grandes potências mundiais que projectam aí sua influência, directamente ou através de aliados locais. Todavia, estes últimos procuram igualmente arrastá-las para os seus próprios conflitos. Mas a (in)fidelidade é retribuída, pois as grandes potências usualmente deixam cair os seus aliados locais quando os seus interesses divergem, ou estão já satisfeitos. Os EUA, a Turquia, e os curdos da Síria são o exemplo mais recente destas manobras tortuosas.
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1. Para um observador ocidental externo, o Médio Oriente é extraordinariamente difícil de entender. É um passado com tonalidades medievais, não se sabe muito bem surgido de onde, o qual irrompe, de forma violenta, num mundo pós-moderno dominado pela economia, mercado, comércio e tecnologia. Ao mesmo tempo, as causas usuais de conflitos no Ocidente pouco ou nada permitem perceber os acontecimentos. Os conflitos do Médio Oriente não seguem usualmente linhas ideológicas de esquerda e direita como na política ocidental. Quanto aos Estados da região, também não são normais Estados-Nação. Têm no seu interior uma multiplicidade de grupos étnicos e religiosos, por vezes em disputa violenta com o próprio Estado. As alianças e inimizades, políticas e militares, fazem-se, desfazem-se e refazem-se em inúmeros conflitos. Mais inteligíveis são os interesses das grandes potências mundiais que projectam aí sua influência, directamente ou através de aliados locais. Todavia, estes últimos procuram igualmente arrastá-las para os seus próprios conflitos. Mas a (in)fidelidade é retribuída, pois as grandes potências usualmente deixam cair os seus aliados locais quando os seus interesses divergem, ou estão já satisfeitos. Os EUA, a Turquia, e os curdos da Síria são o exemplo mais recente destas manobras tortuosas.
2. Na política internacional, muitas vezes as coisas não são o que parecem. Recep Tayyip Erdogan afirma publicamente que a Turquia está preocupada com o futuro dos refugiados sírios no seu território. Assim, quer criar uma zona militarmente segura no Nordeste da Síria, na qual seja possível instalar uma parte substancial dos vários milhões de refugiados que a Turquia acolheu devido à guerra. À primeira vista, o plano de actuação militar do Estado turco é humanitário. Implementar zonas seguras para as populações tem precedentes na região e noutras partes do mundo. Por exemplo, nos anos 1990, no Iraque, foram estabelecidas zonas de exclusão aérea a Norte e a Sul, para proteger curdos e xiitas das represálias de Saddam Hussein. Mas, no actual caso, o objectivo último podem muito bem ser outro e nada tem de humanitário: alterar a demografia no Norte da Síria diluindo a actual maioria curda num conjunto de populações árabes. Os prometidos planos de reconstrução económica são uma peça adicional dessa estratégia, para tornar a intervenção militar mais aceitável. Através da criação de uma zona tampão no território sírio, a Turquia ganha influência e meios de intervenção permanentes nos assuntos da Síria, com ou sem Bashar al-Assad.
3. A Turquia tem uma obsessão com os curdos, dentro e fora das suas fronteiras. Em parte, a explicação é de natureza geopolítica. Existe uma substancial população de etnia curda que, historicamente, habita o Leste e Sudeste do país, mas hoje encontra-se também nas grandes aglomerações urbanas, como Istambul e Ancara. Ao mesmo tempo, as populações curdas têm continuidade na Síria, Iraque e Irão. Na Turquia, os anos 1980 e 1990 foram marcados pela sublevação armada do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), à qual o exército turco respondeu com uma violenta repressão num conflito que terá provocado dezenas de milhares de vítimas. Agora, na guerra da Síria, as Unidades de Protecção Popular (YPG) formadas por curdos, são vistas pela Turquia, como uma organização “terrorista” e uma ramificação do PKK. São o alvo preferencial das suas incursões militares no interior da Síria. Quanto ao Daesh (“Estado Islâmico”) e a outros grupos islamistas-jihadistas, não são, para a Turquia, o seu problema maior. Basta lembrar a calculista inércia turca na altura do cerco de Kobani em 2014 e 2015, quando o Daesh estava em expansão na Síria e Iraque e massacrava indiscriminadamente as populações civis.
4. Na óptica curda, o seu abandono pelos EUA às mãos da Turquia lembra feridas do passado. O slogan “América primeiro” não existia em 1919, mas a semelhança da actual política externa norte-americana com os acontecimentos ocorridos após o final da I Guerra Mundial merece ser aqui analisada. Claro que comparar Donald Trump com Woodrow Wilson, o Presidente dos EUA em 1919, é uma enorme injustiça para este último. Woodrow Wilson foi um dos grandes presidentes dos EUA no século XX. Chefiou os norte-americanos no período crítico da I Guerra Mundial. Foi um arquitecto maior da Sociedade das Nações fundada em 1919, a organização precursora das actuais Nações Unidas. Foi um dos maiores críticos de uma política marcada por relações de poder e interesses (realpolitik) e um dos grandes impulsionadores do que hoje chamamos multilateralismo. O “direito das nações disporem de si próprias” foi um princípio maior da política externa de Woodrow Wilson. Todavia, há um aspecto incómodo a ligar aos EUA de 1919 aos EUA de 2019. Esse direito de autodeterminação também valia teoricamente para os curdos, que deveriam ter podido formar o seu próprio Estado. Mas não foi isso que aconteceu.
5. Por vezes, a história repete-se ainda que sob outras formas. A Turquia, se for bem-sucedida nesta operação militar, será tentada a concluir que precisa, cada vez menos, dos EUA e da NATO. A sua própria experiência do passado de 1919-1922 sugere-lhe isso. Nessa altura, com a alteração de relações de força no terreno a seu favor, devido às vitórias militares de Mustafa Kemal Atatürk, o Curdistão previsto no Tratado de Sèvres de 1920 ficou no papel. Os EUA, um dos grandes impulsionadores da ideia de autodeterminação nacional, regressaram ao seu isolacionismo. Um congresso dominado pelos republicanos recusou a ratificação do Tratado de Versalhes e a participação na SdN. Um século depois, Donald Trump parece ter similar visão de política externa: Daesh derrotado, missão cumprida, soldados em casa. Mas hoje o mundo é radicalmente diferente. A distância geográfica não desliga os norte-americanos das questões internacionais e de segurança como no passado. As cedências de Donald Trump à obsessão da Turquia com os curdos da Síria são eticamente condenáveis e um erro estratégico. Abandonados à sua sorte, os curdos estão a ser empurrados para procurar aliados em Bashar al-Assad, na Rússia, ou até no Irão. O terreno fica livre para os rivais e inimigos. Os aliados questionam-se o que vale hoje a aliança com os EUA.