Decreto-Lei n.º 54/2018, de 6 de Julho: um ano passado, um ano perdido?
As ambiguidades contidas no diploma parecem actuar como um travão ao sucesso educativo dos alunos com NEE.
Em primeiro lugar, gostaria de esclarecer que este artigo não pretende tratar um conjunto de argumentos contra a inclusão de alunos com necessidades educativas especiais (NEE) nas escolas regulares e, muito menos, contra a sua exclusão dessas mesmas escolas. Pretende, sim, apresentar alguns considerandos com base na minha apreciação do Decreto-Lei n.º 54/2018, de 6 de Julho, passado que foi um ano da sua entrada em vigor. Graves, direi, por subestimarem os direitos dos alunos com NEE. Por lançarem uma confusão generalizada no que respeita a conceitos (de inclusão, por exemplo). Por discriminarem contra a maioria dos alunos com NEE (à excepção de alunos com problemas sensoriais), desconsiderando a categorização. Por fazerem apelo a processos ineficazes de atendimento às necessidades dos alunos com NEE (ver DL 54/2018, Capítulo II). Por criarem centros de apoio à aprendizagem cujo objectivo é nebuloso (ver Artigo 13.º). Pela falta de preparação (e de tempo) de muitos professores para cumprirem o que lhes é solicitado com base no preceituado no Decreto-Lei. Pelo financiamento exíguo que impede o bom funcionamento das escolas no que concerne à construção de respostas educativas eficazes para os alunos com NEE (e, com certeza, para todos os alunos). Enfim, pelo preconizado no Decreto-Lei negligenciar, na generalidade, a educação de crianças e adolescentes com NEE ao ponto de poder vir a comprometer o seu futuro.
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Em primeiro lugar, gostaria de esclarecer que este artigo não pretende tratar um conjunto de argumentos contra a inclusão de alunos com necessidades educativas especiais (NEE) nas escolas regulares e, muito menos, contra a sua exclusão dessas mesmas escolas. Pretende, sim, apresentar alguns considerandos com base na minha apreciação do Decreto-Lei n.º 54/2018, de 6 de Julho, passado que foi um ano da sua entrada em vigor. Graves, direi, por subestimarem os direitos dos alunos com NEE. Por lançarem uma confusão generalizada no que respeita a conceitos (de inclusão, por exemplo). Por discriminarem contra a maioria dos alunos com NEE (à excepção de alunos com problemas sensoriais), desconsiderando a categorização. Por fazerem apelo a processos ineficazes de atendimento às necessidades dos alunos com NEE (ver DL 54/2018, Capítulo II). Por criarem centros de apoio à aprendizagem cujo objectivo é nebuloso (ver Artigo 13.º). Pela falta de preparação (e de tempo) de muitos professores para cumprirem o que lhes é solicitado com base no preceituado no Decreto-Lei. Pelo financiamento exíguo que impede o bom funcionamento das escolas no que concerne à construção de respostas educativas eficazes para os alunos com NEE (e, com certeza, para todos os alunos). Enfim, pelo preconizado no Decreto-Lei negligenciar, na generalidade, a educação de crianças e adolescentes com NEE ao ponto de poder vir a comprometer o seu futuro.
Começo pelo conceito de inclusão que parece não ter sido bem entendido pelos mentores do Decreto-Lei (leia-se, Ministério da Educação). Compreender o conceito de Inclusão não é fácil, pois ele é, na maioria dos casos, vagamente definido ou nem sequer o é (caso do Decreto-Lei). Para compreendermos o significado de inclusão (educacional, neste caso), é preciso que compreendamos o conceito de diversidade, ou seja, que compreendamos as diferenças intrínsecas ao conceito de diversidade. Assim, ao falarmos de inclusão educacional estamo-nos a referir a um tipo específico de diversidade que deve receber uma atenção “especial” por parte de professores e de outros agentes educativos nos vários contextos escolares onde os alunos com NEE se movem. Contudo, o ME parece não ter percebido a noção de que não se deve comparar diversidade de capacidades e necessidades, neste caso relacionadas com a educação, com a diversidade que se prende, por exemplo, com a altura dos seres humanos, a cor da pele, a religião e a nacionalidade. Ou seja, no caso do preceituado no DL 54/2018, os seus mentores, defensores da inclusão total, fazem-nos crer que todas as diversidades exigem a mesma resposta, cometendo o erro de não entender que, em educação, há uma muito maior variabilidade ou diversidade entre as necessidades educacionais dos alunos com NEE. Que a diversidade que diz respeito à inclusão educacional destes alunos, particularmente dos alunos com NEE significativas, exige também uma “diversidade” de práticas educacionais, tantas vezes em contextos educacionais distintos, sendo o contexto de sala de aula (classe regular) o desejável.
Um outro aspecto que sempre me levantou dúvidas e que merece ser revisto é o facto de o DL 54/2018 desconsiderar a “categorização” de uma forma discriminatória. O Decreto-Lei, por um lado, elimina os termos e conceitos de “necessidades especiais” e de “necessidades educativas especiais” e, por outro, considera apenas os problemas sensoriais, sendo os problemas do foro cognitivo completamente ignorados. A abolição da categorização das NEE do foro cognitivo faz com que seja difícil considerar as condições específicas próprias dos alunos com NEE e, por conseguinte, desrespeita os seus direitos, a igualdade de oportunidades e coarcta os princípios inerentes a uma educação de qualidade. Este tipo de retórica pós-moderna (abolição da categorização) é simplesmente um regresso ao passado e não um indicador de progresso científico no que respeita à educação de alunos com NEE.
Ainda outra questão a merecer atenção prende-se com a introdução no Decreto-Lei de um modelo de intervenção multinível, como sendo a principal ferramenta metodológica “para apoiar a aprendizagem e a inclusão” (Introdução, artigo 7.º). Neste modelo, as medidas de apoio estão organizadas em três níveis: universais, selectivas e adicionais (artigo 7.º). No entanto, o envolvimento do docente de educação especial, de uma forma mais directa e presencial, só é requerido no nível três (artigo 10.º). Contudo, mesmo no terceiro nível, levantam-se-me dúvidas se será possível ao docente de educação especial intervir directamente com um aluno com NEE. Uma interpretação plausível é que o aluno supostamente só será encaminhado, em termos formais, para os serviços de educação especial quando não responder às medidas adicionais (nível 3). No entanto, os objectivos de um sistema de apoio preventivo devem ser claros. Se o objectivo do primeiro nível é fornecer instrução de qualidade para todos os alunos e o do segundo, orientado para o atendimento às necessidades dos alunos com baixo desempenho e/ou em risco de insucesso escolar (presumíveis NEE), então a questão que se coloca é: qual deve ser o papel do terceiro nível de intervenção? No Decreto-Lei há muita ambivalência sobre o objectivo destes níveis que, conjugada com a confusão dos procedimentos, me levanta dúvidas sobre quem serão os potenciais beneficiários das medidas supracitadas. Isto é, os procedimentos que dizem respeito à avaliação, “identificação” e intervenção, e à transição de nível para nível, não são claros. Por exemplo, quais são os critérios para determinar a capacidade de resposta, ou não, a uma intervenção? Qual é o cronograma para avaliar se uma intervenção (e.g., segundo nível) é bem-sucedida? Mais, para que o modelo de intervenção multinível possa vir a ter sucesso é necessário considerar a preparação/formação dos professores, uma vez que, actualmente, a formação inicial, a especializada e a contínua são bastante ineficazes, devendo, no mais curto espaço de tempo, ser repensadas.
Haveria ainda muitas mais questões que me levantam dúvidas, embora, por falta de espaço, apenas mencione mais três: (1) O estatuto dos Centros de Apoio à Aprendizagem (CAA) é, quanto a mim, bastante volúvel. Os CAA podem ser simultaneamente um recurso organizacional (não autónomo) destinado a prestar serviços adicionais e/ou parte de um apoio generalizado à escola, aos “docentes do grupo ou turma a que os alunos pertencem” (artigo 13.º). Contudo, no artigo 36.º do DL pode-se ler que os CAA “acolhem as valências existentes no terreno, nomeadamente as unidades especializadas”; (2) Os Centros de Recursos para a Inclusão (CRI), de acordo com o preceituado no artigo 18.º do Decreto-Lei, “são serviços especializados existentes na comunidade” destinados a “apoiar a inclusão das crianças e alunos”. Contudo, embora o Decreto-Lei faça referência a “estabelecimentos de educação especial com acordo de cooperação com o Ministério da Educação” (artigo 11.º), até à data me parece que “as condições de acesso, de frequência e o financiamento” continuam incertos (artigo 37.º); (3) O Decreto-Lei estabelece ainda Escolas de Referência (ER) destinadas a responder às necessidades dos alunos com perdas visuais ou cegos (artigo 14.º) e dos alunos surdos (artigo 15.º). Conquanto o preceituado em ambos os artigos me pareça claro, as dúvidas colocam-se quanto ao exacto funcionamento das ER, uma vez que, no seu artigo 16.º, o Decreto-lei também menciona “Escolas de referência para a intervenção precoce na infância”.
Com este cenário como pano de fundo, as ambiguidades contidas no DL parecem actuar como um travão ao sucesso educativo dos alunos com NEE. Sem dúvida que a inclusão deve garantir o direito de todos os alunos com NEE frequentarem um sistema educacional público, gratuito e de qualidade, cujo objectivo seja o de os preparar para a vida activa. Contudo, o preceituado no Decreto-Lei nº 54/2018, de 6 de Julho, dada a sua linguagem genérica, confusa e discriminatória, torna altamente improvável que Portugal atinja o objectivo desejado, uma educação inclusiva de qualidade para todos os alunos com NEE.