África do Sul: as cicatrizes pós-apartheid de uma geração que já nasceu livre

São a geração pós-apartheid e nas suas mãos cabe a tarefa de construir um país novo, uno, harmonioso e igualitário. Embora sejam todos iguais perante a lei, terão os jovens sul-africanos negros as mesmas oportunidades? A fotógrafa Ilvy Njiokiktjien visitou o país 25 anos após o fim do apartheid e trouxe consigo o retrato da “geração que já nasceu livre”.

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Wilmarie Zakithi é branca e tem um namorado negro. Acredita que a missão da sua geração é derrubar barreiras e preconceitos raciais. "Ser uma tábua rasa." ©Ilvy Njiokiktjien

Eles nasceram livres. Livres do apartheid, o sistema de segregação racial que vigorou na África do Sul até 1994; livres da opressão e da desigualdade que estavam inscritos na lei do país. São produto do sonho da “nação arco-íris” de Nelson Mandela, o homem que colocou termo a décadas de domínio minoritário branco há, precisamente, 25 anos. Brancos, negros: todos têm, hoje, direitos iguais. Mas terão iguais oportunidades?

Os jovens que Ilvy Njiokiktjien, multipremiada fotógrafa da agência VII Photo, retratou e entrevistou para a série Born Free Generation, desenvolvida por todo o território sul-africano, têm entre 18 e 28 anos — nasceram, portanto, entre 1991 e 2001. As gerações anteriores, que lutaram pelo estabelecimento de um sistema justo, depositam neles grandes expectativas, percebeu a fotógrafa: “Espera-se deles que mudem e unam o país”, pode ler-se na sinopse deste projecto. Mas que ferramentas têm os jovens negros, além de uma Constituição que os coloca em pé de igualdade, para darem forma a essa harmonia?

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©Ilvy Njiokiktjien

Segregação pertence ao passado?

Corrupção. Desemprego. Herança familiar de pobreza. Estes são os principais obstáculos apontados pelos jovens sul-africanos de hoje. “A segregação oficial pode ser uma coisa do passado, mas a segregação de classes veio substituí-la”, resume Ilvy Njiokiktjien, num longo documento que dirigiu ao P3. “Infelizmente, devido à corrupção, ao nepotismo e ao crescimento do crime, muitos jovens sentem que lhes foi vendido um sonho irrealista”, disse o estudante Lwando Nkamisa, de 28 anos, à fotógrafa holandesa. Apesar de estudar numa instituição que antes do fim do apartheid se destinava apenas a pessoas brancas, a Universidade de Stellenbosch, Lwando sente que há ainda um longo caminho a percorrer em direcção à verdadeira paridade e justiça social.

Zinhle Mafba, licenciada na área científica, não podia estar mais de acordo e aponta outra razão: “Os avós e bisavós [de pessoas brancas] estiveram a trabalhar e a acumular riqueza enquanto os nossos antepassados negros se esforçavam por sobreviver.” Mafba, hoje desempregada, sente, com alguma mágoa, que os negros da sua geração estão a começar do zero.

“Se és branco, os teus pais abriram uma conta bancária em teu nome quando ainda eras criança, pouparam dinheiro para ti”, diz William Zondi, sem-abrigo de 22 anos. Ele não teve a mesma sorte. Fugiu de casa com sete anos após a morte da mãe. Infeliz com o pai e a sua nova companheira, apanhou um comboio, sem destino, e resolveu sair em Durban, atraído por “umas luzes bonitas”. Foi o início da vida nas ruas, que se mantém até hoje. A sua grande paixão é o surf. E é com água salgada que cura os ferimentos que resultam de rixas nas duras ruas da terceira maior cidade da África do Sul. “O sal faz arder, mas fecha as feridas rapidamente.”

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"Se és branco, os teus pais abriram uma conta bancária em teu nome quando eras criança." William Zondi não teve a mesma sorte. Hoje, é sem-abrigo na cidade de Durban.

O denominado black tax que consiste no dinheiro que se espera que os jovens trabalhadores negros doem aos membros menos afortunados da família é também visto como um sério entrave. A designer de moda Cindy Mfabe, de 27 anos, que, ironicamente, diz ter nascido “quando nasceu a liberdade”, vive com o pai, a irmã e o irmão em Alexandra, nos arredores de Joanesburgo. “Nós [negros] temos de trabalhar o dobro do tempo porque temos muitos danos a reparar antes de sequer podermos pensar em dirigir-nos para onde queremos ir”, desabafa. “Antes de sequer comprar uma casa, tenho de pensar nos meus pais.”

Todos os jovens que a fotógrafa entrevistou são da opinião que “ser branco aumenta a possibilidade de ser bem-sucedido”. “O nepotismo é um problema grande aqui. As pessoas colocam os seus familiares e amigos primeiro”, explica Innocent Moreku, “um artista, um ícone da moda, uma personalidade das redes sociais, um mestre-de-cerimónias” de 22 anos. “Um criativo muito influente”, resume, em declarações a Ilvy. O jovem de Lotus Garden, Pretória, considera-se “de classe baixa”. Cresceu no seio de uma numerosa família, que nem sempre era capaz de providenciar comida ou roupa em bom estado para todos. Innocent criou o seu próprio — e modesto — negócio: é vendedor ambulante de roupa vintage. “Era muito difícil estar perto de pessoas que usavam as roupas mais fixes, de marcas da moda, sabes. Ser de classe baixa não é fácil. É bem difícil. Especialmente quando se é… preto.” A última palavra é sussurrada. “Aí tens de fazer tudo sozinho, tens de lutar.” Segundo os dados oficiais, a taxa de desemprego jovem na África do Sul rondava, em 2018, os 38%. Porém, fontes não oficiais dizem que ultrapassa os 50%.

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A fotógrafa Ilvy Njiokiktjien, que vive presentemente na Holanda, é membro da VII Agency. Centrada, sobretudo, em questões relacionadas com África, a fotógrafa já foi duplamente premiada pela World Press Photo e Pictures of The Year. Os seus trabalhos ja conheceram publicação no The New York Times, TIME, Newsweek, Der Spiegel, STERN, Telegraph Magazine, entre outros. D.R.

Racismo? Hoje?

Zinhle Mfaba não vive num local onde possa conhecer muita gente branca. Soweto, na periferia de Joanesburgo, é um município que foi desenhado para ser o dormitório de trabalhadores negros — longe do centro da cidade, zona outrora destinada aos cidadãos brancos. No local, os habitantes são ainda, numa esmagadora maioria, negros. Mfaba tem 24 anos, é negra e pertence à Orquestra Nacional Juvenil, onde conheceu Nina Cilliers, de 21 anos, branca. “A única altura em que conheço pessoas brancas é quando vou para os ensaios e toco com elas”, explica. A fotógrafa, que acompanhou, durante uma semana, uma viagem deste grupo, notou que, durante os intervalos para almoço, brancos e negros não se misturam, comem quase separados. Nina defende: “Não é racismo. Não é que nos odiemos, apenas...” Mfaba interrompe: “Eu posso sentar-me com a Nina agora porque a conheço. Mas se não a conhecer e ela for branca… com uma pessoa negra tu sabes do que irás falar para quebrar o gelo.”

Kevin du Plessis, jovem branco de 28 anos, começou a questionar o racismo dos pais ainda em criança. “Cresci a ouvir que não deveria ser amigo da nossa empregada”, contou a Ilvy Njiokiktjien. “O copo dela estava sempre junto à pia, ao lado dos produtos de limpeza. Ela não podia beber dos mesmos copos que nós.” Sentia-se incomodado com as atitudes e comentários dos pais. Apesar de tudo, a sua esfera social é quase exclusivamente branca. “Tenho muitos mais amigos brancos porque, em Gauteng, não encontras muitos jovens negros que falem africaner. É mais fácil socializar e ser espontâneo quando utilizo a minha própria língua.” A língua africaner, historicamente associada ao processo de colonização holandesa, encerra em si alguma carga negativa — e a polémica que estalou, em 2016, numa das mais proeminentes instituições de ensino superior do país é prova disso mesmo. A supracitada Universidade de Stellenbosch decidiu adoptar, como língua oficial, o inglês em vez do africaner, argumentando “a necessidade de inclusão de estudantes negros que têm como primeiro idioma o inglês” e permitindo-lhes assim “um acesso completo e igualitário à instituição”, como pode ler-se no mais recente artigo da Time sobre o assunto.  

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Até 1994, o colégio interno Hilton College só aceitava rapazes brancos.

A maioria dos jovens entrevistados pela fotógrafa de 34 anos ainda se depara com algumas atitudes racistas, mas acredita que o racismo está a desaparecer à medida que as gerações anteriores se vão extinguindo. Quase todos não guardam qualquer tipo de ressentimento e afirmam, confortavelmente, que não teriam qualquer problema em manter uma relação de amizade ou amor com alguém de outra raça.

África do Sul e democracia: que futuro?

Apesar de a herança de Nelson Mandela se manter ainda viva nos corações dos jovens sul-africanos, o futuro da democracia permanece debaixo de uma nuvem de descrédito formada por sucessivos escândalos de corrupção ao nível da esfera política do país. As eleições legislativas de Maio foram marcadas pela maior taxa de abstenção entre os jovens dos últimos 20 anos, de acordo com a Comissão Eleitoral Independente da África do Sul. Uma das explicações possíveis é precisamente a taxa de desemprego jovem, a terceira mais alta do mundo, de acordo com o Banco Mundial.

“O meu pai e a minha mãe votam desde 2005 e nada mudou”, explica Phumlani Congo, jovem de 18 anos que vive num bairro de lata no município de Khayelitsha, na Cidade do Cabo. A sua mãe, que marchou nas manifestações anti-apartheid, ainda guarda a cicatriz da bala que lhe foi dirigida pelas forças de autoridade. Muitos dos seus vizinhos juntaram-se a gangues, mas Phumlani está focado num objectivo: tornar-se rapper profissional.

“Se perguntares a um típico sul-africano, a primeira palavra que pensam quando ouvem a palavra ‘político’ é corrupção”, diz Lwando Nkamisa, que acredita que é possível fazer melhor do que tem sido feito até hoje pela classe política. Segundo a fotógrafa, alguns dos seus entrevistados sentem-se mal com a sua apatia porque sabem o preço elevado que as gerações anteriores pagaram para que todos, hoje, tenham o direito de votar. Outros não sabem em quem votar. Sentem que os políticos defendem primeiro os seus interesses, e não o interesse público, e que não estão verdadeiramente empenhados na causa política.

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O sonho de Nelson Mandela, de construir uma "nação arco-íris", mantém-se vivo nos corações dos jovens sul-africanos ©Ilvy Njiokiktjien

O que significa “nascer livre”?

“Eu posso fazer tudo o que quero, estudar o que me apetecer, ir para qualquer lugar que entendo dentro da África do Sul”, diz Mzimkulu Ntakana, estudante de Economia de 21 anos, quando lhe perguntam o que significa ser livre. “Não há barreiras, agora. Podes comprar casas, o teu vizinho pode ser branco, o teu amigo pode ser branco. Podes namorar até com uma pessoa branca, o que é bom.”

Wilmarie Deetlefs tem 24 anos, é branca e tem um namorado negro. “Acho que a nossa geração está cá para formar uma reconciliação, acho que é esse o nosso papel. A África do Sul precisa de uma tábua rasa. Acho que é a nossa geração. Nós somos a tábua rasa.

“Nascer livre de quê?” questiona Candice Mama. “Acho que é apenas uma daquelas expressões que os média adoptaram. Ainda vivemos com as repercussões do sistema opressivo que estava cá antes de nós. Não acredito que as pessoas ‘nasçam livres’ até que as injustiças económicas sejam corrigidas.”

Lwando Nkamisa acredita que nascer livre é ter oportunidade de realizar os seus sonhos. “Não significa que tenhas de ser rico, não significa que tenhas de ter, garantidamente, um emprego. Mas significa que tenhas a possibilidade de ser a pessoa que aspiras ser.”