Lisboa e o livro: singularidades de uma relação
Estes são tempos em que livrarias históricas podem fechar em Lisboa perante a mudez e a passividade quase completa de quem, segundo a própria UNESCO, tem a obrigação de as proteger.
Este ano repetiu-se algo que, de tanto suceder, tem tornado os lisboetas quase insensíveis: o fecho de mais uma livraria com décadas de existência e uma história relevante. Saber-se, porém, que a mesma cidade onde isto tem sucedido na última década quis ser “capital mundial” do livro pode obrigar, pelo menos, a um despertar desse torpor e a uma reflexão retrospectiva.
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Este ano repetiu-se algo que, de tanto suceder, tem tornado os lisboetas quase insensíveis: o fecho de mais uma livraria com décadas de existência e uma história relevante. Saber-se, porém, que a mesma cidade onde isto tem sucedido na última década quis ser “capital mundial” do livro pode obrigar, pelo menos, a um despertar desse torpor e a uma reflexão retrospectiva.
Imaginemos, por uns segundos, uma proverbial e vigilante mosca, numa parede algures em Lisboa, em 2009, parando de adejar as asas para escutar, incrédula, o seguinte: um grupo de distintos cavalheiros discutia, sem aparente ironia, a ideia de apresentar uma candidatura da capital portuguesa a Capital Mundial do Livro para 2012 ou 2013. Suponhamos a mosca conhecedora do que se passava com as livrarias independentes mais ou menos históricas de Lisboa, e ser-nos-á fácil compreender o seu assombro: por então, tinham fechado a Camões na Rua da Misericórdia e a Barateira à Trindade, e estava iminente o fecho da Loja das Colecções e da Portugal, na Rua do Carmo. Quem as conheceu, sabe que se tratava de uma imensa área conjunta dedicada à venda de livros e para sempre perdida. Dotemos a nossa mosca de uma ligeira capacidade divinatória, e a sua paralisia explica-se cristalinamente: nos anos seguintes fechariam, entre as mais históricas, a Livraria Diário de Notícias ao Rossio, a Artes e Letras, a Aillaud & Lello, a Rodrigues, a Lácio ao Campo Grande, e, entre as mais recentes, a Pó dos Livros, a Metamorfose e a Book House, e a permanente ameaça de fecho começou a pesar sobre quase todas as livrarias sobreviventes. Ora, se isto bastava para tornar catatónica uma habitualmente irrequieta mosca, saber quem eram os distintos cavalheiros que a tão heróica missão se lançavam poderia mesmo tê-la matado de síncope: tratava-se, nem mais nem menos, do que a APEL e a câmara municipal, irmanadas na vontade de provar ao mundo que Lisboa era não só uma cidade de livros (e, presumivelmente, de livrarias), como a melhor de todas as cidades que tal título para si chamassem.
Pela imprensa, sabemos que tudo nascera de um convite feito em 2009 pelo então embaixador na UNESCO, Manuel Maria Carrilho, e aceite pela APEL e pela CML, que “fundiriam” interesses na realização do programa da candidatura até Março de 2011. Havia caveat: a proposta teria de incidir, sobretudo, na protecção da “rede de livrarias clássicas”. “A força da candidatura”, dizia-se, dependeria da capacidade de Lisboa “exprimir as suas singularidades na relação com o livro”. Era nestas singularidades, contudo, que (mudemos de proverbial criatura) a porca torcia o rabo: o recém-eleito presidente da APEL, Paulo Teixeira Pinto (dono do Grupo Babel), fizera grande alarido com a renovação da livraria Guimarães, ao Chiado, inaugurando-a ainda em obras para ministro da Cultura ver, mas esta acabaria por fechar pouco depois. Ao mesmo tempo, o investidor Diniz Nazareth Fernandes, da Fundação Agostinho Fernandes, começava a deixar cair activos que incluíam, para azar da solidez da candidatura à UNESCO, outras livrarias históricas como a Buchholz e a Sá da Costa.
Para além destas sombras que começavam a pairar sobre antigas livrarias da cidade, a CML, por seu lado, parecia incapaz de dinamizar a oferta do livro e a relação deste com os habitantes da cidade noutro formato que não fosse, para o livro “novo”, a feira anual no Parque Eduardo VII (montada, na verdade, pela APEL e um par de empresas que têm a cargo a “programação cultural”) e, para o livro antigo, na modestíssima feira semanal de alfarrabistas da Rua do Anchieta. Convenhamos que, na iminência de uma candidatura daquela envergadura, era pouco (para termo de comparação, Amesterdão – que fora Capital Mundial em 2008 – tem, para os alfarrabistas, uma feira semanal numa praça média da cidade, a Spui, e uma feira mensal com livreiros de todo o país na sua maior praça, a Dam). As condições impostas pela UNESCO, e explícitas na sua ficha de candidatura, deixavam também pouca margem de manobra a uma cidade com um palmarés tão deficiente: logo no início, na “apresentação da cidade”, o ponto 2 pede planos específicos da administração municipal para o “fortalecimento das livrarias”, e o ponto 8 exige provas de “proficiência” na organização de feiras do livro nacionais e internacionais.
Nesse ano, durante a Feira do Livro, ainda se falou na misteriosa candidatura (“no caso de não ser escolhida para 2012 uma cidade europeia”), mas a última referência encontrada é durante a Feira de 2011, em que, estranhamente, foi a ministra Canavilhas a lançar o “desafio”, desconhecendo porventura o arranque inicial da ideia, e já depois do prazo limite para uma candidatura ao ano de 2013. Sabemos que Lisboa nunca foi capital do livro (Erevan foi-o em 2012, e em 2013 Banguecoque), e não estou mesmo certo de que tenha havido sequer uma candidatura formal (contactadas a APEL e a CML, nenhuma instituição o confirmou). O que houve, sim, em 2013, foi a continuação da escalada demolidora na vida das livrarias históricas: em Julho, numa Sá da Costa por um fio, os seus cinco livreiros em auto-gestão apresentavam, junto com o editor Vitor Silva Tavares, o Manifesto contra o desastroso encerramento das livrarias da Cidade de Lisboa no centenário da Livraria Sá da Costa (publicado pela Letra Livre). Mais do que vítimas de uma recessão no mercado, as livrarias eram-no agora de uma nova Lei das Rendas, que permitiu a actualização brutal dos valores cobrados em lojas muito antigas, como a Avelar Machado, ao fundo da Calçada do Combro, por uns tempos o mais antigo alfarrabista de Lisboa até encerrar em 2016, ano em que, para que a ironia fosse ainda mais desconfortável, a própria livraria da CML encerrou portas.
E assim chegámos a 2019, em que, após uma resistência tenaz, a Ulmeiro fechou em Benfica, pouco antes de cumprir meio século de existência. Da vereação camarária, que sonhara com a coroa mundial das “cidades-livro” dez anos antes, veio apenas o silêncio. Estes são, aliás, tempos em que livrarias históricas podem fechar em Lisboa perante a mudez e a passividade quase completas de quem, segundo a própria UNESCO, tem a obrigação de as proteger, abrindo flancos à ignomínia, como a de um qualquer ataque na imprensa a quem apenas procurou manter-se de porta aberta como pôde*. No Manifesto de 2013, lê-se: “a cidade da paranóia mercantil (...) passa de lado, não sabe, não conhece, não quer saber, não quer conhecer”, e “a própria corporação de editores e livreiros não só encolhe os ombros como parece rejubilar quando um ʻconcorrenteʼ (...) se vê forçado a fechar a porta”. Custa, de facto, ver editores e outros livreiros como agentes ou meras testemunhas passivas de um tal tratamento, mas parece haver, pelo menos, quem ainda venha em socorro: a Ulmeiro terá nova vida na Fábrica Braço de Prata, lá para os lados do Poço do Bispo. Quem sabe se não é esta a crucial “singularidade” da presente relação de Lisboa com os livros: quanto mais longe estes estiverem do seu centro de rendas obscenas e hotéis em cada esquina, melhor.
*“A morte a crédito de uma livraria histórica” (i, 18/07/2019). A boutade celiniana do título traía um absurdo propósito de humilhar dois livreiros em dificuldades, mas também o desinteresse por uma exposição dedicada à história da Ulmeiro e um documentário sobre a mesma, estreado na Fábrica Braço de Prata, que o redactor não foi ver (o que não o impediu de dispensar umas palavras sobre ele).