A Igreja enfrenta realmente o risco de um cisma?

O fantasma de uma nova cisão dentro da Igreja Católica foi ressuscitado pelos conservadores que acusam Francisco de ser herége e apóstata. Mas, ao PÚBLICO, especialistas consideram que críticas ao Papa provêm de uma “minoria muito ruidosa”.

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Goncalo Dias / ARQUIVO

A ameaça de um novo cisma na Igreja Católica parece ter-se reavivado e, na imprensa, têm-se multiplicado as análises sobre quão ameaçada está a Igreja pelo risco de uma nova cisão interna, impulsionada por declarados opositores ao 266º Papa. Entre estes, está o ultraconservador cardeal alemão Gerhard Müller, que até 2017 presidiu à toda-poderosa Congregação para a Doutrina da Fé e que, em 2015, juntamente com o cardeal norte-americano Raymond Burke, chegou mesmo a rotular como heréticas as ideias de Francisco, nomeadamente a proposta de os divorciados recasados receberem a comunhão, contida na exortação pós-sinodal Amoris Laetitia. Neste grupo, incluem-se ainda o ex-núncio Carlo Maria Viganò, que acusou Francisco de encobrimento dos abusos sexuais cometidos por Theodore McCarrick, entretanto reduzido ao estado laical, bem como o cardeal Robert Sarah, e, mais recentemente, o cardeal-arcebispo emérito de Madrid, Rouco Varela, entre vários outros.

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A ameaça de um novo cisma na Igreja Católica parece ter-se reavivado e, na imprensa, têm-se multiplicado as análises sobre quão ameaçada está a Igreja pelo risco de uma nova cisão interna, impulsionada por declarados opositores ao 266º Papa. Entre estes, está o ultraconservador cardeal alemão Gerhard Müller, que até 2017 presidiu à toda-poderosa Congregação para a Doutrina da Fé e que, em 2015, juntamente com o cardeal norte-americano Raymond Burke, chegou mesmo a rotular como heréticas as ideias de Francisco, nomeadamente a proposta de os divorciados recasados receberem a comunhão, contida na exortação pós-sinodal Amoris Laetitia. Neste grupo, incluem-se ainda o ex-núncio Carlo Maria Viganò, que acusou Francisco de encobrimento dos abusos sexuais cometidos por Theodore McCarrick, entretanto reduzido ao estado laical, bem como o cardeal Robert Sarah, e, mais recentemente, o cardeal-arcebispo emérito de Madrid, Rouco Varela, entre vários outros.

Em uníssono, concordaram que Francisco não tem feito mais do que destruir a Igreja e a sua doutrina, nomeadamente com as propostas “apóstatas” lançadas sobre a mesa no sínodo que arranca este domingo. O Papa não escamoteou a questão e, no início deste mês, a bordo do avião que o levou a Roma depois do seu périplo por Moçambique, Madagáscar e Ilhas Maurícias, declarou, suficientemente alto: “Não tenho medo de cismas. Rezo para que não existam”. Reconhecendo que as críticas ao seu pontificado não se circunscrevem a sectores católicos norte-americanos, mas “existem um pouco por toda a parte, mesmo na Cúria romana”, Francisco advertiu ainda que fazer críticas sem querer ouvir a resposta e sem dialogar “é não amar a Igreja, é seguir atrás de uma ideia fixa: mudar o Papa ou criar um cisma”.

O líder da Igreja Católica terá querido assim, segundo a interpretação de Frei Bento Domingues, libertar-se da chantagem com que o quereriam amordaçar. “Durante muito tempo, o que ele ouvia era ‘Ah, mas não pode ir por aí, porque esse caminho cria divisão, abre a possibilidade de um novo cisma. Era uma forma não de pensar, mas de chantagear, fechando o debate”, considera. Mas, afinal, qual é a real capacidade de arregimentação desta elite, que, apesar de curta, tem tentáculos espalhados por todos os organismos da Cúria? “É uma minoria aguerrida, que faz muito barulho, e o perigo é real, mas estou convencido de que não vai haver qualquer cisma”, responde o professor Anselmo Borges. “A mobilização é pouca”, concorda Frei Bento Domingues, para quem a forte mediatização das críticas a Francisco decorre em boa parte do poder económico dos seus autores.

“Um dos grandes problemas do mundo contemporâneo é a beleza e a importância dos meios de comunicação. E estes, ao mesmo tempo, também podem servir para a descomunicação, porque os meios de comunicação dependem do dinheiro, público ou privado, e, portanto, quem tem mais dinheiro tem mais poder e torna-se mais visível”, sustenta, para acrescentar que, deste modo, “se faz do nada um monstro”. De resto, a Igreja “não está como no tempo de Lutero, à defesa, pelo contrário, está a querer precisamente abrir-se ao debate”, conclui.

Esta não seria a primeira vez que a Igreja Católica se cinde por causa de divisões entre os membros da sua elite. Depois do Grande Cisma de 1054, que dividiu os cristãos entre católicos e ortodoxos, a Igreja dividiu-se entre 1378 e 1417, altura em que os católicos chegaram a somar três papas, que disputavam entre si o poder sobre o mundo cristão Ocidental. A cisão maior, porém, operar-se-ia no século XVI com a reforma protestante operada pelo monge e teólogo Martinho Lutero que criou um novo braço do cristianismo, ao mesmo tempo que, a partir de Inglaterra, e como o Papa Clemente VII recusasse a anulação do casamento de Henrique VIII com Catarina de Aragão, surgia a Igreja Anglicana. Já no século XX, o cisma mais famoso deu-se quando o arcebispo francês Marcel Lefebvre se insurgiu contra as reformas ordenadas pelo Concílio Vaticano II, incluindo o ecumenismo, a liberdade religiosa e a tradução da liturgia para o vernáculo, e ordenou quatro bispos sem a aprovação do Papa Paulo VI, num movimento que levou à sua excomunhão, mas que nunca ganhou dimensão e que foi definhando, sobretudo depois da morte do seu fundador.  “Foi um ‘cismazinho’”, qualifica Frei Bento, sobre uma altura em que a Igreja “abriu as suas janelas para o mundo” e que, por causa disso, viu os seus alicerces esboroarem-se, no entender dos mais conservadores. Em 1978, com a eleição de João Paulo II, que era profundamente conservador em termos de moral sexual e apresentou justificação intelectual para anacronismos como a persistência da proibição do uso de contraceptivos, a Igreja voltaria a fechar-se sobre si própria. Até à chegada de Francisco que, desde que foi eleito, em 2013, insiste em reabrir-lhe as portas.