Quem fala assim também é gago
Se esta exposição mediática servir para algo bom, que seja para nos fazer pensar: quantos de nós teríamos a ousadia de nos desafiar perante a gaguez?
A campanha eleitoral trouxe uma rara exposição mediática à gaguez. E tudo porque nos debates televisivos, entrevistas em rádio e demais tempos de antena surgiu uma candidata que, por acaso, é também uma pessoa que gagueja. Entre todo civismo sadio que estava a ser demonstrado até ao momento, surgem agora vídeos e publicações que alegam um fingimento da gaguez como trunfo eleitoral.
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A campanha eleitoral trouxe uma rara exposição mediática à gaguez. E tudo porque nos debates televisivos, entrevistas em rádio e demais tempos de antena surgiu uma candidata que, por acaso, é também uma pessoa que gagueja. Entre todo civismo sadio que estava a ser demonstrado até ao momento, surgem agora vídeos e publicações que alegam um fingimento da gaguez como trunfo eleitoral.
Tropeçar nas sílabas, sons repetidos, tiques faciais ou troca de palavras a meio para conseguir acabar a frase — a gaguez é uma perturbação da fluência que afecta cerca 1% da população. Joacine Katar-Moreira, candidata à Assembleia da República, faz parte desse grupo. Mas além desses 1%, falamos também de todos os familiares, amigos, namoradas, maridos, colegas de trabalho ou até inimigos que convivem com gagos. E são todos eles, todos nós, que tentamos evitar os muitos mitos, estereótipos e desinformação sobre o assunto.
E se é verdade que esta vivência instantânea é algo de muito bom e nos permite ter informação, também é verdade que nos pode fazer partilhar ideias erradas e tirar conclusões sem a mínima reflexão. Pelos feeds surgem vídeos em que Joacine aparece a discursar fluentemente, sem tropeços nem gaguez. E então é por isso que não é gaga?
Sempre que digo que o meu pai fez parte do grupo de fundadores da Associação Portuguesa de Gagos surgem as típicas piadolas, gargalhadas e brincadeiras sobre como seriam as reuniões. E sabem que mais? Nunca me chateou porque, acreditem, quem gagueja brinca com isso de uma forma genial, melhor até que qualquer um de nós. Mas se brincam é porque sabem a ousadia que têm de ter para fazer tudo o que outros fazem, inclusive ser candidatos à Assembleia da República, superando todos os risos disfarçados, frases terminadas ou suspiros de impaciência.
Entrevistas de trabalho, declarações de amor, primeiro dia de aulas, novo grupo de amigos, audiências de tribunal, apresentações de tese... podia continuar a enumerar. Quantos de nós não tropeçaram já ou não se expressaram da melhor forma em qualquer uma destas situações?
Tal e qual como qualquer um nós tem variabilidade no discurso, também a variabilidade dos momentos de gaguez é indiscutivelmente normal. O que qualquer pessoa que gagueja enfrenta todos os dias é o esforço constante para comunicar. Há momentos em que a fala flui de forma natural, intercalados com outros, onde a gaguez faz das suas.
A Sociedade Portuguesa de Terapeutas da Fala explica que “a gaguez se caracteriza pela presença de disfluências atípicas do discurso, de natureza involuntária, com duração e forma variáveis, que resultam de dificuldades de planeamento e execução motora da fala”. Ou seja, a pessoa sabe exactamente o que quer dizer, mas a palavra simplesmente não flui. Este esforço leva a tensão muscular, que até pode levar a outros movimentos involuntários, piscar de olhos, tremores de lábios e tanto mais.
E se esta exposição mediática servir para algo bom, que seja não para as mensagens de ódio ou discussões banais sobre trunfos políticos, mas sim para trazer à baila a importância de todo e qualquer gago, todo e qualquer familiar de uma criança gaga, conhecer os mecanismos e as organizações que tem à sua disposição. E mais, que nos faça a todos pensar, quantos de nós teríamos a ousadia de nos desafiar perante a gaguez.