Uma guitarra eléctrica para evocar a queda do muro de Berlim
Encomendada pela Metropolitana, com o apoio do Instituto Italiano de Cultura, para assinalar os 30 anos da queda do muro de Berlim, Zero Formula inicia-se com um solo da guitarra eléctrica.
Não é todos os dias que a guitarra eléctrica é o instrumento solista de um concerto de música “clássica”, como aconteceu no domingo no CCB por ocasião da estreia absoluta de Zero Formula, obra encomendada pela Metropolitana a Luca Francesconi (n. 1956) e interpretada entre duas emblemáticas partituras de Brahms: a Abertura Trágica e a Sinfonia nº4. No entanto, as intervenções deste instrumento no repertório contemporâneo são bem mais numerosas do que se poderia pensar. Especialmente a partir de Gruppen (1955-57), de Stockhausen, compositores como Berio, Boulez, André Previn, Morton Feldman ou Tristan Murail, entre outros, passaram a tirar partido da guitarra eléctrica, cujas possibilidades de amplificação e transformação do som ao nível tímbrico e ampla gama de efeitos característicos constituem vantajosos aliados na exploração de novas linguagens. Não se trata tanto de estabelecer pontes com géneros associados à imagem de marca do instrumento, como o rock, o jazz ou os blues (embora tal também possa acontecer), mas da sua apropriação em diferentes estéticas do universo da música erudita das últimas décadas.
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Não é todos os dias que a guitarra eléctrica é o instrumento solista de um concerto de música “clássica”, como aconteceu no domingo no CCB por ocasião da estreia absoluta de Zero Formula, obra encomendada pela Metropolitana a Luca Francesconi (n. 1956) e interpretada entre duas emblemáticas partituras de Brahms: a Abertura Trágica e a Sinfonia nº4. No entanto, as intervenções deste instrumento no repertório contemporâneo são bem mais numerosas do que se poderia pensar. Especialmente a partir de Gruppen (1955-57), de Stockhausen, compositores como Berio, Boulez, André Previn, Morton Feldman ou Tristan Murail, entre outros, passaram a tirar partido da guitarra eléctrica, cujas possibilidades de amplificação e transformação do som ao nível tímbrico e ampla gama de efeitos característicos constituem vantajosos aliados na exploração de novas linguagens. Não se trata tanto de estabelecer pontes com géneros associados à imagem de marca do instrumento, como o rock, o jazz ou os blues (embora tal também possa acontecer), mas da sua apropriação em diferentes estéticas do universo da música erudita das últimas décadas.
É também neste sentido que se deve entender o seu uso na criação de Luca Francesconi, artista associado da temporada da Metropolitana de 2019-2010. Um dos mais destacados compositores do nosso tempo, detentor de uma vasta produção que recorre quer a meios acústicos, quer à música electrónica, Francesconi foi aluno de Stockhausen, Berio e Corghi, tendo também estudado jazz. Numa entrevista publicada online pela Metropolitana diz que a sua carreira tem sido uma “longa viagem a tentar encontrar saída para os dogmas negativos que surgiram em torno da música contemporânea”, mas tal não significa que a sua linguagem ceda a soluções fáceis para captar o ouvinte.
Encomendada pela Metropolitana, com o apoio do Instituto Italiano de Cultura, para assinalar os 30 anos da queda do muro de Berlim, Zero Formula inicia-se com um solo da guitarra eléctrica que evoca um estado embrionário do som — o “estado zero” do som na sua forma mais rudimentar — que se vai expandindo e transformando pouco a pouco em matéria-prima para novas construções. Por outras palavras, para a edificação de novos mundos musicais, libertos de “dogmas”, sem abdicar das “raízes”, para recorrer às palavras do compositor. As características idiomáticas da guitarra eléctrica, tocada com destreza e precisão na sua multiplicidade de técnicas por Ruben Mattia Santorsa, contagiam o tratamento da própria orquestra e o tipo de ataques, efeitos e gestos musicais aplicados aos diferentes naipes instrumentais num discurso que se constrói através de um equilibrado jogo de tensões, ao qual a Orquestra Metropolitana e a direcção de Pedro Amaral souberam responder com eficácia. Tendo em conta as habituais preocupações pedagógicas da Metropolitana, não se compreende a ausência de um texto de contextualização da nova peça no programa de sala, do qual constava apenas a biografia do compositor. Pode até ser legítimo abdicar de uma nota de programa tradicional (para não condicionar a audição), mas faria sentido ter publicado pelo menos a já citada entrevista.
Como preâmbulo do concerto, ouviu-se a Abertura Trágica, de Brahms, numa interpretação marcada por incisivos contrastes dinâmicos, sendo a segunda parte preenchida com a Sinfonia nº 4 do mesmo compositor. A celebridade e mestria desta obra, que combina o rigor das linhas clássicas com uma arrebatada expressividade, fazem de cada apresentação um desafio tendo em conta o peso da sua história interpretativa. Na primeira parte do Allegro non troppo, a sincronização dos instrumentistas nem sempre foi perfeita e as dinâmicas em fortíssimo careceram por vezes de uma sonoridade mais timbrada, mas à medida que a obra se desenrolava, o conjunto foi ganhando maior coesão e lustro sonoro, bem como maior fluidez nas transições entre as passagens mais líricas e as secções mais impetuosas. Do Andante moderato, no qual se destacaram as belas intervenções das madeiras, à monumental “Passacaglia” do 4º andamento, verdadeiro monumento da arte da variação, passando pelo veemente Allegro giocoso, a Metropolitana acabaria por proporcionar uma interpretação consistente que despertou o entusiasmo da assistência. Estas mesmas obras de Brahms poderão ser ouvidas novamente no próximo sábado, no Teatro Thalia, em conjunto com mais uma estreia absoluta que assinala outra efeméride: Circumnavigare, de António Chagas Rosa, peça que tem como mote os 500 anos da viagem de Fernão de Magalhães. Será solista o violoncelista Filipe Quaresma.