Supremo britânico: uma sentença imprescindível
Ler, saborear e digerir uma sentença como esta é um acto de cidadania. Ela permanecerá como um marco assinalável.
1. A decisão de 24 de Setembro de 2019 do Supremo Tribunal do Reino Unido é uma das mais importantes decisões judiciais da história recente da democracia ocidental. Não tanto pela sua conclusão ou estatuição final, mas antes pelos seus fundamentos, pelo seu percurso argumentativo, pela decantação dos pilares de uma ordem democrática. Insiste-se, ela não vale pelo sentido final da decisão – a inconstitucionalidade do decretamento da suspensão do Parlamento pelo primeiro-ministro. Ela vale pela caracterização impecável do que foi, é e deve ser uma ordem democrática e liberal, fundada na separação dos poderes e na primazia do direito e dos direitos.
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1. A decisão de 24 de Setembro de 2019 do Supremo Tribunal do Reino Unido é uma das mais importantes decisões judiciais da história recente da democracia ocidental. Não tanto pela sua conclusão ou estatuição final, mas antes pelos seus fundamentos, pelo seu percurso argumentativo, pela decantação dos pilares de uma ordem democrática. Insiste-se, ela não vale pelo sentido final da decisão – a inconstitucionalidade do decretamento da suspensão do Parlamento pelo primeiro-ministro. Ela vale pela caracterização impecável do que foi, é e deve ser uma ordem democrática e liberal, fundada na separação dos poderes e na primazia do direito e dos direitos.
Trata-se de uma verdadeira lição de direito constitucional, escrita numa linguagem elegante e acessível, que chega a tocar o brilhante. Uma lição, não apenas para os sistemas tipicamente parlamentares e, em particular, para o sistema britânico, mas, mutatis mutandis, para toda e qualquer democracia liberal, que não queira ser convertida numa simples “ditadura da maioria” ou na “tirania de todos”, de que falava Montesquieu. Ler, saborear e digerir uma sentença como esta é um acto de cidadania. Assente numa longa tradição constitucional, evocando recorrentemente a grande disputa constitucional do século XVII inglês (de que tantas vezes aqui se falou), ela enfrenta o maior repto político-constitucional do nosso tempo: a irreprimível pulsão para a “democracia directa”.
2. Não sabemos e ninguém sabe para que destino se dirigem as democracias liberais do Ocidente: se para a demagogia e populismo das pretensas democracias directas; se para uma reinvenção das democracias representativas. Mas seja como for, esta decisão permanecerá como um marco, um marco assinalável: ou o momento em que a pulsão populista foi travada e invertida; ou o canto do cisne em que a velha ordem representativa se despede da novel vertigem populista.
3. “Deixem-nos recordar os fundamentos da nossa constituição. Vivemos numa democracia representativa” – diz-se, já a findar, no § 55. Eis o inciso em que os juízes – que deliberaram por unanimidade – revelam a absoluta consciência da essência do problema político-constitucional dos nossos dias. E desenvolvendo o princípio representativo e o correspondente lugar do Executivo, prosseguem de imediato: “A Câmara dos Comuns existe porque o povo elegeu os seus membros. O Governo não é directamente eleito pelo povo (ao invés do que se passa em algumas outras democracias). O Governo subsiste porque goza da confiança da Câmara dos Comuns.”
Estas afirmações lapidares vêm na sequência argumentativa dos dois princípios constitucionais do direito britânico que relevam para o caso: o princípio da soberania parlamentar (§ 41) e o princípio da “responsabilidade” parlamentar do Governo (§ 46). A soberania – ou, talvez fosse mais adequado, chamar-lhe “primazia” – parlamentar foi reiteradamente afirmada por vasta jurisprudência dos tribunais britânicos desde o século XVII. Com efeito, afigura-se evidente que uma prerrogativa governamental de suspensão ilimitada (ou excessiva) do Parlamento poria em causa a “primazia” do Parlamento (§ 42), a quem estariam a ser vedadas as competências legislativas e de controlo do Executivo. Por sua vez, e no que diz respeito ao cânone da responsabilidade parlamentar, afirma-se taxativamente: “a condução da governação por um primeiro-ministro e Governo colectivamente responsáveis e demandáveis pelo Parlamento está no coração da democracia de Westminter” (§ 46; citação de Lorde Bingham of Cornhill). Pois bem, também uma suspensão indefinida ou desproporcionada põe em causa o exercício dos poderes de supervisão do Parlamento (§ 50).
4. O poder de suspender o Parlamento (tal como o de o dissolver) integra-se num poder ou função do Executivo, ancestralmente cometida ao monarca, que se denomina “prerrogativa” (exemplarmente descrita no capítulo XIV do II Tratado do Governo, de John Locke). Tal poder, embora nominalmente exercido pelo monarca, cabe na “moderna prática constitucional” (sic) ao primeiro-ministro. E, por isso, se pode ler na sentença: “que não foi sugerido nestes recursos que Sua Majestade pudesse actuar de outro modo senão o de estar obrigada pelo costume constitucional de seguir o conselho” do primeiro-ministro (§ 30).
Sendo a prerrogativa um poder constitucional, põe-se desde logo a questão de saber se um tribunal – mesmo um alto tribunal – pode decidir questões políticas (§ 31). Aos tribunais não cabe dirimir questões políticas, mas incumbe, isso sim, determinar se, num determinado caso, “o direito reconhece a existência de um poder de prerrogativa” ou quais são “os seus limites legais” (§ 37). Com efeito, já em 1611, no célebre Case of Proclamations, se estabeleceu que “o Rei não tem prerrogativa, a não ser aquela que a lei do país lhe conceda” (§§ 32, 41 e 49). Este caso ocorre precisamente contra o primeiro dos Stuarts, Tiago I, que, de resto, havia teorizado abundantemente, em obra escrita, sobre o “direito divino dos reis” (no que foi contraditado pela neo-escolástica de Coimbra-Salamanca de Francisco de Suárez e de Francisco de Vitória). E que naturalmente queria usar a “prerrogativa” contra o Parlamento, no que havia de ser seguido pelo seu filho, Carlos I, dando origem à guerra civil, à abolição da monarquia e à proclamação da República de Cromwell.
5. Em poucas palavras, desde o século XVII, a prerrogativa está indisputavelmente sujeita ao controlo dos tribunais. Por isto mesmo, o Supremo Tribunal recorda que a revisão judicial não viola a separação dos poderes (§ 34). “Na verdade, ao assegurar que o governo não usa o poder de suspensão ilegalmente impedindo o Parlamento de desempenhar as suas funções próprias, o tribunal está a tornar efectiva a separação dos poderes” (§ 34). Não há liberdade nem democracia onde não haja separação dos poderes. Também entre nós, é fundamental não o esquecer.
SIM e NÃO
SIM. Rui Rio. Seja nas matérias programáticas (caso evidente da economia), seja nas questões de Estado (caso de Tancos), revela um modo diferente de fazer política. Um modo alternativo que é alternativa.
NÃO. António Costa. O silêncio sobre a dimensão política do caso de Tancos é mau demais. Mas a indução de uma teoria da conspiração contra o PS, alimentada por Santos Silva e Carlos César, é ainda pior.