Excedente orçamental pela primeira vez desde 1973!
O próximo Governo deveria rever as estimativas para o saldo orçamental de 2019, de forma a assegurar que o Orçamento do Estado de 2020 possa ser baseado em pressupostos realistas.
Como aqui ontem se argumentou é muito provável que as administrações públicas apresentem em 2019 um excedente entre 0,7% e 0,9% do PIB, um desvio significativo face às previsões do Governo de um défice de 0,2%, tendo já registado um excedente orçamental no ano terminado em Junho. É a primeira vez, desde 1973, que se regista (e se registará em 2019) um saldo positivo nas contas públicas.
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Como aqui ontem se argumentou é muito provável que as administrações públicas apresentem em 2019 um excedente entre 0,7% e 0,9% do PIB, um desvio significativo face às previsões do Governo de um défice de 0,2%, tendo já registado um excedente orçamental no ano terminado em Junho. É a primeira vez, desde 1973, que se regista (e se registará em 2019) um saldo positivo nas contas públicas.
Vários factores explicam este desempenho.
Primeiro, o bom andamento da economia que, desde 2015, cresce a taxas nominais decentes: em média, 4,2% por ano.
De facto, afigura-se que o resgate da troika e as medidas de austeridade (entre as quais, as que foram “além da troika”) resultaram na contracção da economia portuguesa em termos nominais (quedas nominais do PIB de 2,2% em 2011 e de 4,4% em 2012!). E essa fase está associada, como seria de esperar, a enormes aumentos do valor nominal da dívida pública (e do peso da dívida pública em percentagem do PIB). Quando, sobretudo a partir de meados de 2014, o anterior Governo de Passos Coelho, na sequência de vários “chumbos” do Tribunal Constitucional, deixa de aplicar novas medidas de austeridade e os rendimentos começam a ser repostos, a economia começa lentamente a crescer, com o último ano desse Governo a registar uma taxa de crescimento nominal de 3,8%.
Não fossem, por um lado, a resolução do BES em 2014 pelo anterior Governo e as recapitalizações do Banif, da Caixa Geral de Depósitos e do Novo Banco feitas pelo actual Governo e, por outro lado, a estratégia de gestão da dívida pública, com o aumento das maturidades das emissões de dívida entre 2014 e 2018, o aumento do valor nominal de dívida pública teria caído para, em média, menos de dois mil milhões de euros por ano entre 2014 e 2016. A dívida pública teria provavelmente estabilizado em termos nominais a partir de 2017.
Ou seja, o défice público, medido pelo aumento anual do valor nominal da dívida pública (uma definição de défice mais abrangente e, afigura-se, mais apropriada do que a utilizada pelo Eurostat), passa a estar controlado quando o país começa a crescer em termos nominais.
Outro dos factores que explica a melhoria do saldo orçamental é, sem dúvida, a redução do peso da despesa com juros em resultado do maior crescimento económico e, posteriormente, da queda das taxas de juro. De facto, a despesa com juros cai de 4,9% do PIB entre 2012 e 2014 para 3,4% do PIB em 2018. Dada a redução das taxas de juro nos mercados secundários e a melhoria dos saldos orçamentais é provável que o peso da despesa com juros diminua para próximo de 2% do PIB até 2023 (o Governo prevê uma redução para 2,7% do PIB em 2023), criando uma margem orçamental de cerca de 1,4% do PIB (=3,4%-2,0%) que irá contribuir para um aumento dos excedentes orçamentais previstos nos próximos anos.
A redução das taxas de juro nos mercados foi tão significativa que a taxa de juro implícita da dívida emitida pelo IGCP entre Janeiro e Julho de 2019 desceu para 1,3% (em comparação com 1,8% em 2018 e 2,6% em 2017), não obstante a maturidade média da dívida emitida ter aumentado de 10,3 em 2018 para 11 anos nos primeiros sete meses de 2019, devendo cair para cerca de 1,1% no cômputo de 2019. E, em 2020, essa taxa de juro implícita das novas emissões de dívida deverá cair abaixo de 0,5%. Tal resultará numa redução da taxa de juro implícita média da dívida e em reduções adicionais da despesa com juros nos próximos anos.
Finalmente, o terceiro factor que explica o desempenho das contas públicas terá sido a contenção orçamental, nomeadamente a pressão sobre (e a redução) o investimento público, sobre os consumos intermédios, nomeadamente na saúde, o aumento abaixo da taxa de inflação das pensões de reforma e o não aumento dos salários do pessoal da função pública. Evidentemente, estas quatro últimas medidas tiveram efeitos negativos no crescimento económico, no potencial de crescimento da economia no longo prazo, sobre a qualidade dos serviços públicos e sobre o nível de vida das famílias. O processo de consolidação orçamental teria sido mais rápido e mais sustentável se se tivesse optado por um caminho menos draconiano.
Mas não se pode mudar o passado. Chegados a este ponto de excedentes orçamentais sem fim à vista é sobre o terceiro factor que interessa actuar acabando de vez com a contenção (ou austeridade) orçamental.
Programa de Estabilidade 2019-2023 está obsoleto
O desempenho orçamental observado em 2019 sinaliza que o Programa de Estabilidade 2019-2023 de Abril deste ano, que serve de base (ou pelo menos de referência) aos programas eleitorais dos vários partidos políticos, foi ultrapassado pela realidade. Como foi o Orçamento do Estado de 2019 que previa um défice de 0,2% do PIB.
Estatísticas chinesas, por favor, não!
Os desvios da execução em relação ao programado nos principais documentos de política orçamental do país – o Orçamento do Estado e o Programa de Estabilidade – têm sido sistemáticos e crescentes ao longo da legislatura que agora chega ao fim.
Na prática definiram-se objectivos para o défice público que não constituem o ponto médio de uma distribuição normal – ou seja, os desvios não ocorrem aleatoriamente em torno desses objectivos – mas constituem uma parede intransponível e a nunca alcançar.
Ao invés, a política orçamental deveria ser definida de forma a atingir o saldo orçamental programado, tolerando défices ligeiramente superiores ao objectivo definido.
Desse modo a política orçamental permitiria programar melhor o investimento público e melhorar sustentadamente as condições de vida dos portugueses.
É, por conseguinte, importante que as estatísticas dos documentos como o Orçamento do Estado reflictam a realidade. O próximo Parlamento deveria legislar no sentido de obrigar o Governo a corrigir o problema observado nos últimos 4 anos e a obrigar técnicos do Ministério das Finanças e Governo a apresentar e se necessário corrigir, ao longo de cada ano, as metas para variáveis como o saldo orçamental.
As actuais estimativas demasiado prudentes do Governo sobre o saldo orçamental de 2019, inconsistentes com os dados mais recentes do INE (de 23 de Setembro de 2019), que apontam para um excedente significativo, condicionam a discussão na Assembleia da República sobre o Orçamento do Estado de 2020. Ajudam o Ministério das Finanças na negociação do Orçamento com os partidos com representação na Assembleia da República mas viciam o processo orçamental. Por conseguinte, uma das primeiras medidas do próximo Governo deveria ser rever as estimativas para o saldo orçamental de 2019, de forma a assegurar que o Orçamento do Estado de 2020 possa ser baseado em pressupostos realistas.