Crónica sobre o domingo
Domingo é, portanto, dia de reboot natural ao sistema. Vão-se-me as distracções divertidas da semana e fico eu, de alma despida, sensível, pele de galinha. Alma de galinha.
É domingo à tarde. Talvez não seja o domingo que eu queria, mas é o domingo que eu mereço. Estou — porque é domingo — deitado no sofá, a entregar-me ao luxo do descanso. Vejo as vinhas por uma janela quadrada, cuja moldura verde escura contrasta com o verde fatigado das vinhas, acabadas de dar à luz mais um ano. Os parteiros de vinhas contrastam severamente com as parteiras de humanos. Todavia, é engraçado notar que, em ambas as ocasiões, se festeja muito a missão cumprida — pelo menos aqui no Minho. Quer o vinho resultante das uvas, quer o bebé recém-nascido, irão originar vida. E viva a isso.
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É domingo à tarde. Talvez não seja o domingo que eu queria, mas é o domingo que eu mereço. Estou — porque é domingo — deitado no sofá, a entregar-me ao luxo do descanso. Vejo as vinhas por uma janela quadrada, cuja moldura verde escura contrasta com o verde fatigado das vinhas, acabadas de dar à luz mais um ano. Os parteiros de vinhas contrastam severamente com as parteiras de humanos. Todavia, é engraçado notar que, em ambas as ocasiões, se festeja muito a missão cumprida — pelo menos aqui no Minho. Quer o vinho resultante das uvas, quer o bebé recém-nascido, irão originar vida. E viva a isso.
Ainda só são 17 horas, mas eu preferia que fosse mais tarde. O pico da minha sensibilidade dá-se ao fim da tarde, antes de jantar (curiosamente a hora a que também se dão os picos das febres nos seres humanos). Julgo que um dia morrerei de causas naturais por volta de um fim de tarde de domingo. Como uma folha de um carvalho que se aguentou até ao Inverno, mas que se vai na primeira rajada forte deste. Tão perto de conseguir (desculpem, família, se vos estraguei o Natal). Ao que interessa.
É domingo. Vejo a minha cadela em cima do pufe, lentamente a tentar perceber como há-de subir para o sofá que lhe parece mais fácil trepar. Está indecisa entre dois. Sempre devagar e com o focinho ornamentado das remelas com que se maquilhara de manhã — “estas são da MAC”. Sempre leve. Como se se tratasse de um eixo peludo, gira alternadamente entre os dois sofás. Desiste, assume o pufe, estica as patas, fecha os olhos e descansa. Eu compreendo, é domingo. Se fosse a uma terça-feira à tarde, convidaria os seus amigos cães engenheiros para tirar medidas entre os saltos; se fosse a uma quarta-feira de manhã, contrataria um cão matemático para calcular as possibilidades de sucesso e insucesso dos saltos; se fosse a uma sexta-feira de copos loucos, falaria com uma cadela bruxa para adivinhar o seu futuro. Mas, quer dizer, é domingo. Para quê chatear-se?
O domingo, a mim, tende para várias coisas. Na maioria das vezes revela-se bastante depressivo. Noutras, principalmente quando estou de ressaca, bastante criativo em matérias de escrita (porque estou extraordinariamente estúpido e ainda ligeiramente intoxicado). Há, contudo, algo transversal a todos os domingos: um sentimento vazio. De despovoamento da minha alma. De solidão benigna, íntima e necessária. O domingo não se trata de um deserto infinito cheio de areia; não é isso. Trata-se, sim, de um mar corpulento que, simplesmente nesse dia, seca. Um mar robusto, bravo, macio, com vida e corpo que existe a semana toda: conduz pessoas a sítios, vira embarcações ao contrário, cria ondas de tragédia e de diversão, ouve os conselhos da lua, fala consigo, interage com os seres mitológicos que nele vivem e dá vida a outros seres que nele habitam — seja em forma de amizade simbiótica ou interesse “parasitosco”.
Contudo, ao domingo, toda essa fauna e flora que nele habitam durante a semana extinguem-se. São sugadas para um abismo, como se destapassem o ralo do chão da minha alma e por lá tudo se esvaísse sem eu querer. Aí secou. Aí é sinal de domingo. Não há mar corpulento. Há seca. Há nada. Há eu comigo. Nem sequer há história. Há eu num planeta absolutamente solitário, em que por vezes recebo visitas muitíssimo desejadas de jantares com o meu pai ou músicas de bossa nova. Há um intenso bafo quente de medo da morte. Como se ela estivesse lá. É por isso que sei que vou morrer a um domingo. Ela está lá. Sinto-a todos os domingos. Como se fosse um ritual de aprendizagem tosco vendido por um pobre brasileiro online de “Como se parece a morte? Capítulo 1” (ler no tom).
Domingo é, portanto, dia de reboot natural ao sistema. Vão-se-me as distracções divertidas da semana e fico eu, de alma despida, sensível, pele de galinha. Alma de galinha. Talvez seja mesmo isso que escrevi no início: não o domingo que eu queira, mas o domingo que eu mereço. Que eu preciso. Uma necessidade de silêncio sepulcral. Uma necessidade de música escolhida delicadamente. Uma necessidade metafísica de limpar a alma.
Domingo é dia amarelo claro, de mar que secou, parecido com Marte. A playlist compõe-se por jazz e bossa nova. Deve ser saboreado devagar para ter o efeito desejado. Como aqueles rebuçados para a tosse que ninguém gostava e éramos obrigados a tomar em criança. “Tem de ser”, dizia a mãe. Agora é “tem de ser” em resposta à solução fácil que toda a gente me diz ser muito novo para pensar sobre. Graças a Deus sou católico e amo muitos os meus pais.
Normalmente, quando é domingo, só me sinto bem à hora de ir para a cama (bem dentro da madrugada). Quando posso deixar de ser o humano tão sensível e preparar-me para mais uma semana de fazer render qualquer coisa que, ou me dê de comer, ou dê razões aos meus pais para ainda aceitarem darem-me de comer. Aí vai-se o domingo e vem a segunda-feira. Tudo isto deixa de fazer sentido. Afinal, foi só mais uma epifania resultante do tempo livre a mais típico dos domingos.
Um viva à vida. Ela pode ser triste, mas é sempre bonita. Vemo-nos no próximo domingo.