“Tive de ser baptizado para ir estudar”: africanos em Portugal partilham as suas histórias de vida

Vídeos, testemunhos, debate: a Culturgest, em Lisboa, recebe esta quinta-feira às 18h30 a sessão Memórias Africanas de Portugal, parte de dois projectos de investigação do ISEG e da Faculdade de Letras. As histórias de quem foi trazido por um mercenário ou de quem teve a família a trabalhar nas roças em São Tomé são algumas das partilhas que contrapõem “a narrativa normalizada de que são os europeus que vão a África e depois têm as suas memórias”.

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Jacques foi trazido para Portugal por um mercenário antes do 25 de Abril DR

Jacques nasceu no meio do mato, no Congo. A família foi “quase toda morta por rebeldes”. Um mercenário, que se tornou na altura pai adoptivo, trouxe-o para Portugal, ainda antes da revolução, no final dos anos 1960. Foi viver em São Pedro do Sul. “Tive que ser baptizado para estudar, não podia estudar sem ser católico.”

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Jacques nasceu no meio do mato, no Congo. A família foi “quase toda morta por rebeldes”. Um mercenário, que se tornou na altura pai adoptivo, trouxe-o para Portugal, ainda antes da revolução, no final dos anos 1960. Foi viver em São Pedro do Sul. “Tive que ser baptizado para estudar, não podia estudar sem ser católico.”

Veio o 25 de Abril e acabou por ficar sozinho porque o pai fugiu para o Brasil. Hoje vive em Alfama. Não tem a certeza da data de nascimento, tem apenas uma autorização de residência temporária apesar dos anos todos a viver em Portugal.

Ilda é de Cabo Verde, e conta uma viagem que fez para São Tomé e Príncipe (STP) de barco com a mãe. Faz parte de uma família de contratados, ou seja, trabalhadores que iam para as roças de STP trabalhar de sol a sol durante o colonialismo. Não foi à escola, aprendeu a ler sozinha. É cantora. “Fiz um grupo de batuque para poder cantar as histórias. Para poder transmitir a história para quem não percebe, para quem não quer ouvir palavras. Transmito conselhos em voz. A voz é um hino”, diz. Em Lisboa, viveu num bairro de barracas onde as pessoas se ajudavam. “Quando precisavam de africanos, chamavam os africanos para virem trabalhar na Europa. Agora que já está tudo feito, as cidades e as pontes já construídas, os imigrantes tornaram-se indesejados”, comenta.

Adriano, de 92 anos, de origem portuguesa mas nascido em Cabo Verde onde fez carreira no Ministério da Justiça, veio para Portugal em 1975. “Não tenho que me queixar”, diz. “Não tive dificuldade nenhuma.” Mas reconhece que os cabo-verdianos hoje têm entraves em Portugal, nomeadamente por causa de autorizações de residência, e responsabiliza o Governo português por isso.

Estes são três testemunhos gravados em vídeo que nesta quinta-feira vão passar na Culturgest, em Lisboa, às 18h30, na sessão Memórias Africanas de Portugal, no âmbito de dois projectos de investigação, Afro-Port Afrodescendência em Portugal (do ISEG) e Discursos Memorialistas e a Construção da História (da Faculdade de Letras). Segue-se um debate com os académicos Inocência Mata (do Centro de Estudos Comparatistas da Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa), Iolanda Évora (do Centro de Estudos sobre África, Ásia e América Latina, ISEG, Universidade de Lisboa) e Julião Soares de Sousa (do Centro de Estudos Interdisciplinares do século XX, Universidade de Coimbra), e com a jornalista Carla Fernandes (fundadora da associação e audioblogue AfroLis). 

A memória

Além daqueles três testemunhos, há mais quatro que estão gravados; o objectivo é chegarem aos 12, explica Inocência Mata, que está na coordenação dos dois projectos – no caso do Afro-Port, faz co-coordenação com Iolanda Évora, a investigadora principal. No âmbito dos projectos pretende-se estudar como é que a memória “premeia uma série de actividades de produção desse segmento afro-diaspórico” e “também como é que os africanos agenciam quotidianamente essa memória”.

Identificaram as pessoas entrevistadas para partilharem as suas histórias de vida. “A ideia era que contassem a sua visão de Portugal, já que aqui estão há tantos anos. Queríamos trazer memórias de Portugal contrapondo a narrativa normalizada de que são os europeus que vão a África e depois têm as suas memórias”, explica. “Apesar de o projecto Afro-Port não ter como objectivo lidar com memórias orais – mas mais com a afrodescendência, a produção cultural, as sociabilidades, as dinâmicas do activismo –, à medida que fomos avançando sentimos a necessidade de conciliar as duas vertentes. Muitas vezes os jovens nascidos aqui, com uma socialização portuguesa, apresentavam-se como africanos e achámos interessante ver essa questão da identidade africana em Portugal e perceber como é que os africanos a viver em Portugal há mais de 40 anos viam este país.” No fundo, querem discutir também “o que é a afrodescendência em Portugal?”. Isto porque “afrodescendente passou a ser um termo para designar todo o indivíduo que é negro” – o que é incorrecto, afirma Inocência Mata.

A sessão, na qual esperam que alguns dos que deram o testemunho estejam presentes, será uma “antecâmara” para uma reflexão “mais profunda, científica”, que acontece de 11 a 13 de Dezembro, na Faculdade de Letras de Lisboa: a conferência internacional Memórias orais de africanos e afrodescendentes. “Tivemos necessidade de conceptualizar as memórias, de dar um enquadramento científico e relacionar com outras questões.” É no âmbito desta conferência que se inclui a vinda, a 11 de Dezembro, de Hamady Bocoum, director do Museu das Civilizações Negras, que abriu em 2018 em Dakar, no Senegal.