Democracia britânica
A anulação da suspensão da atividade parlamentar pelo Supremo Tribunal constitui o maior revês democrático que um governo britânico alguma vez sofreu.
A decisão unânime do Supremo Tribunal do Reino Unido de declarar ilegal, nula e sem efeito a prorrogação do Parlamento por cinco semanas imposta pelo governo de Boris Johnson contrariou a deriva antidemocrática deste governo e respondeu, por agora, à profunda crise constitucional em que o país está imerso.
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A decisão unânime do Supremo Tribunal do Reino Unido de declarar ilegal, nula e sem efeito a prorrogação do Parlamento por cinco semanas imposta pelo governo de Boris Johnson contrariou a deriva antidemocrática deste governo e respondeu, por agora, à profunda crise constitucional em que o país está imerso.
Os “brexiteers” mais radicais têm vindo a reivindicar a saída da União Europeia sem acordo, invocando o referendo que votou pela saída mas sem indicar a modalidade. Numa palavra, não têm mandato para forçar uma saída sem acordo, tanto mais que no debate prévio ao referendo a saída da União Europeia tinha sido vendida como simples e consensual. Sobrepõem a suposta legitimidade de um referendo consultivo ao poder legislativo do Parlamento eleito, que é desde o século XVIII (com raízes anteriores) a mais importante fonte de poder no Reino Unido.
É por isso que a Constituição alemã só prevê referendos (mandatórios) para mudanças constitucionais e alteração de territórios dos estados que compõem o país. A lição da ascensão do Partido Nazi ao poder sem maioria absoluta parlamentar, com a imposição de uma ditadura feroz através de sucessivos golpes legitimados por referendos, acompanhados pelo aniquilamento dos partidos liberais e pela retirada de cidadania e detenção em campos de concentração de judeus, comunistas e socialistas, é visível. É esta lição que devemos reter: o desaparecimento dos partidos liberais é o primeiro passo para a conquista do poder pela extrema-direita. Daí a importância da resistência deste setor do sistema político, que se tem mostrado muito mais capaz nas atuais circunstâncias de revivalismo da extrema-direita.
A anulação da suspensão da atividade parlamentar pelo Supremo Tribunal constitui o maior revês democrático que um Governo britânico alguma vez sofreu. Boris Johnson é visto como tendo violado a regra constitucional de escrutínio do governo pelo Parlamento. Mas este revês, que suscitou pedidos de demissão do primeiro-ministro por parte da oposição, foi aceite com desafio por Boris Johnson, que recusou demitir-se e lançou novo ataque ao Parlamento, que retomou a sua atividade.
A decisão do Supremo Tribunal revela o poder das instituições democráticas britânicas. Não estamos no mesmo nível de corrupção das instituições norte-americanas, justamente denunciado por Elizabeth Warren na sua campanha eleitoral para a nomeação pelo Partido Democrático.
A imprensa internacional não tem reportado devidamente o elevado nível de resistência cívica da população britânica, com numerosas manifestações de rua e ações em tribunal. Cidadãos têm tomado nas suas mãos a contestação judicial das decisões do governo. Esta resolução do Supremo Tribunal é justamente resultado de uma dessas ações particulares, lançada pela empresária Gina Miller, nascida na Guiana Britânica, que já ganhou dois casos contra o governo. A resistência das instituições britânicas tem sido visível no Parlamento, mas há muito mais atividade a todos os níveis que tem passado despercebida.
Contudo, a deriva autoritária e antiparlamentar do atual Governo não está resolvida. Boris Johnson aceitou a decisão do Supremo Tribunal mas exprimiu o seu desacordo, recusando demitir-se. Jacob Rees-Mogg, que assume as posições mais extremistas, acusou o Supremo Tribunal de golpe anticonstitucional. A exposição do golpe governamental pelo Supremo Tribunal por unanimidade dos 11 juízes, devemos sublinhar, foi considerada uma bomba. Doeu aos que querem perverter a democracia britânica. Dominic Cummings, o conselheiro principal de Boris Johnson, que parece ter estado na origem da suspensão do Parlamento por cinco semanas, é outra figura sinistra deste governo.
Já vai longe o tempo em que os políticos britânicos tinham uma sólida formação jurídica. Jacob Rees-Mogg estudou na escola privada de Eton, de onde vem boa parte da elite do Partido Conservador, e formou-se em História em Oxford. Dominic Cummings vem de Durham, outra escola privada, tendo feito igualmente História em Oxford. Boris Johnson vem de Eton e fez Estudos Clássicos em Oxford. É com sobranceria de uma elite habituada a viver entre si, com intervenções públicas típicas de escola privada, que vêm as decisões do Parlamento e do Supremo Tribunal. Não conhecem suficientemente o sistema jurídico, assim como desconhecem, com prazer, os princípios jurídicos e institucionais da União Europeia. A ideologia autoritária está aliada a uma ignorância voluntária.
Os efeitos da história amadora podem ser nocivos. Christopher Clark, Regius Professor de História em Cambridge, especialista da Prússia e da I Guerra Mundial, publicou há alguns dias na London Review of Books um artigo de análise do blogue de Dominic Cummings. Descobriu que o grande herói de Cummings é Bismarck. Pior, descobriu que a suspensão do Parlamento procura replicar a decisão de Bismarck, em 1862, de ignorar o Parlamento da Prússia para fazer passar uma reforma militar. Clark comenta a retirada de contexto de acontecimentos históricos que se tornam incompreensíveis, assimilados num kit de intervenções supostamente transformadoras. Neste caso, Bismarck beneficiava de uma longa tradição autoritária contraposta por uma constituição recente, ao contrário do que acontece com o Reino Unido.
O sufrágio universal para todos os homens e mulheres adultos sem restrições só foi estabelecido no Reino Unido em 1928, depois do voto de mulheres com mais de 30 anos ter sido introduzido em 1918, devido ao impacto da I Guerra Mundial. Em Portugal o processo foi mais longo, culminando com o sufrágio universal de homens e mulheres sem restrições em 1974. Podemos dizer que estamos perante um século de democracia, no máximo. Que as instituições democráticas se tenham enraizado, contra todas as tradições autoritárias, num número significativo de países, é obra. Que tenhamos superado o lado sombrio da democracia, como lhe chamou Michael Mann ao analisar o nacionalismo europeu, com exclusão de minorias étnicas e religiosas da cidadania e do sufrágio, remoção e extermínio de largos grupos da população considerados exógenos ou incompatíveis com uma definição ideológica restritiva de pátria, é outro avanço.
Estamos agora confrontados com a demagogia autoritária que mobiliza os media para a propaganda ideológica dos benefícios de regimes musculados sem controlo democrático. A verificação de factos que se difunde em vários países tem sido uma das armas de resistência democrática. A utilização das instituições de controlo democrático disponíveis é outro meio. Os novos movimentos da juventude contra as alterações climáticas têm a possibilidade de desarmar parte da agenda da extrema-direita. Práticas empresariais contra o ambiente ou contra condições laborais dignas estão cada vez mais sob escrutínio, bem como os mecanismos de reprodução da desigualdade. Há razões para ter esperança no rejuvenescimento da democracia com uma forte base de transformação social.