Deixou de ser um cálculo político para passar a ser um imperativo moral
O presidente americano não encaixa no molde nem sequer pretende encaixar. Foi eleito provavelmente por isso mesmo.
1. Falar de impeachment a Donald Trump não é propriamente uma novidade. Já se falava dele mesmo antes de ter entrado na Casa Branca. Percebe-se porquê. O actual Presidente americano dificilmente encaixa no molde, mesmo que bastante flexível, do que, na imaginação colectiva ou na história recente americana, costumava definir as características do líder da nação mais poderosa do mundo. Antes de ser candidato, era conhecido pêlos seus negócios na construção e pelos seus reality shows. Não tinha qualquer experiência anterior de serviço público ou qualquer actividade política conhecida. Era um outsider. Começou por ser uma “piada” quando a corrida das primárias do Partido Republicano teve início, em 2015. Venceu a convenção. Foi eleito Presidente. Tudo isto em menos de dois anos. Por um breve momento no tempo, ainda prevaleceu teimosamente a velha regra do bom senso: Trump mudaria a partir do momento em que entrasse na Casa Branca. Três anos depois, já sabemos que não foi assim. O Presidente americano não encaixa no molde nem sequer pretende encaixar. Foi eleito provavelmente por isso mesmo. A sua eleição foi um poderoso sinal de que os ventos estavam a mudar nos Estados Unidos, tal como estavam a mudar nas velhas democracias europeias e um pouco por todo o mundo, com os primeiros sinais da recessão democrática. Por isso, a convicção de que, mais tarde ou mais cedo, seria sujeito a um processo de impeachment sempre andou no ar. A cada escândalo parecia mais perto. Ou mais longe.
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1. Falar de impeachment a Donald Trump não é propriamente uma novidade. Já se falava dele mesmo antes de ter entrado na Casa Branca. Percebe-se porquê. O actual Presidente americano dificilmente encaixa no molde, mesmo que bastante flexível, do que, na imaginação colectiva ou na história recente americana, costumava definir as características do líder da nação mais poderosa do mundo. Antes de ser candidato, era conhecido pêlos seus negócios na construção e pelos seus reality shows. Não tinha qualquer experiência anterior de serviço público ou qualquer actividade política conhecida. Era um outsider. Começou por ser uma “piada” quando a corrida das primárias do Partido Republicano teve início, em 2015. Venceu a convenção. Foi eleito Presidente. Tudo isto em menos de dois anos. Por um breve momento no tempo, ainda prevaleceu teimosamente a velha regra do bom senso: Trump mudaria a partir do momento em que entrasse na Casa Branca. Três anos depois, já sabemos que não foi assim. O Presidente americano não encaixa no molde nem sequer pretende encaixar. Foi eleito provavelmente por isso mesmo. A sua eleição foi um poderoso sinal de que os ventos estavam a mudar nos Estados Unidos, tal como estavam a mudar nas velhas democracias europeias e um pouco por todo o mundo, com os primeiros sinais da recessão democrática. Por isso, a convicção de que, mais tarde ou mais cedo, seria sujeito a um processo de impeachment sempre andou no ar. A cada escândalo parecia mais perto. Ou mais longe.
2. Este debate tem sido constante nas fileiras do Partido Democrata e entre os seus representantes no Congresso. Uma ala mais radical defende-o há muito tempo, mas até agora Nancy Pelosi, a poderosa speaker da Câmara dos Representantes, resistiu à tentação, apoiada por uma maioria de congressistas moderados, considerando que as condições não estavam reunidas para o fazer e, sobretudo, pondo em causa a sua utilidade. Com uma maioria republicana no Senado, a quem cabe a última palavra, estaria condenado ao fracasso. A falta de evidência concreta do “relatório Muller” sobre o “conluio” entre a campanha presidencial e o Kremlin acabou por dar força a esta corrente, em relação a um instrumento constitucional usado raramente ao longo da história da democracia americana. Em 1974, Richard Nixon evitou sujeitar-se a ele, demitindo-se em face do escândalo do Watergate que o envolvia numa série de acções ilegais destinadas a enfraquecer os seus rivais democratas. O processo de impeachment contra Bill Clinton teve apenas a ver com o seu envolvimento com uma estagiária da Casa Branca, Monica Lewinsky. O seu problema foi ter mentido ao povo americano sobre a natureza desse envolvimento. Clinton continua a ser um dos presidentes mais amados pelos americanos. Trump é um caso completamente diferente. O seu amor à verdade dos factos é altamente discutível. Mas, ao contrário do que possa parecer a um observador mais distante, a sua aprovação entre os americanos mantém-se em níveis que se podem considerar normais em comparação com os seus antecessores na mesma altura dos respectivos primeiros mandatos: 43 por cento. Obama ou Reagan registavam idênticos níveis de aprovação e foram facilmente reeleitos.
3. As opiniões dos analistas dividem-se. No Washington Post, insuspeito de qualquer inclinação a favor de Trump, Gary Albernethy, escrevendo de Hillsboro, Ohio, reforça a ideia de que as percepções que se têm em Washington são abismalmente distintas das dos meios rurais ou das cidades mais “provincianas”: “Pensam que encostaram o Presidente às cordas? Experimentem visitar uma feira agrícola no ‘país de Trump’”. A grande maioria acredita mais depressa no tweet do Presidente a queixar-se de “presidencial harassment” do que nos meandros de qualquer escândalo que o atinja, mesmo que envolva questões de segurança nacional, como é o caso. É o país onda as t-shirts exibem facilmente frases como “Trump 2020” ou outras, mais chocantes, de apoio à National Rifle Association. Mas há também muitos defensores de que este é o momento, sob pena de passar a valer tudo na vida política norte-americana. Não apenas pela natureza do escândalo, como porque foi o próprio Trump a reconhecer a sucessão dos acontecimentos que estão em causa. De forma resumida, o presidente suspendeu uma ajuda militar de 400 milhões de dólares à Ucrânia aprovada pelo Congresso, sem qualquer justificação plausível, poucos dias antes de ter telefonado ao seu homólogo ucraniano a pedir uma investigação sobre os negócios do filho de Joe Biden, até agora o adversário melhor colocado para derrotá-lo em 2020. A Rússia anexou Crimeia em 2014 e mantém na região de Donbass uma “guerra” por interpostos separatistas ucranianos. Daí a referência de Pelosi e de muitos analistas ao facto de se tratar de uma questão de segurança nacional.
4. A questão, portanto, é perceber o que mudou em relação às condições anteriores para que Nancy Pelosi alterasse o seu cálculo sobre as vantagens e desvantagens políticas do impeachment. A resposta mais provável é que este caso ultrapassou um limiar a partir do qual os democratas eram forçados a agir sob pena de o respeito pela Constituição e, mais do que isso, pela decência na vida política ficarem seriamente diminuídos. Deixou de se tratar de um mero cálculo político para passar a ser um imperativo moral. É, no fundo, o Estado de Direito que está em causa. Uma barreira foi ultrapassada, mesmo que ninguém saiba ao certo onde o confronto poderá levar.