Maria João Pires: com Schubert está tudo lá
Um concerto que ligava os Impromptus do compositor romântico a curiosas canções arménias de Komitas Vardapet. Mas Schubert e a Arménia ficaram bem distantes. E todos os ouvidos eram para Maria João Pires.
No primeiro acto de A importância de ser Ernesto, de Oscar Wilde, diz uma das personagens: “Não toco com precisão — isso qualquer um consegue —, mas toco com uma maravilhosa expressão. No que toca ao piano, o meu forte é o sentimento. Deixo a ciência para a vida.” Com Maria João Pires a atitude é bem diferente. Da máxima precisão é que pode emergir a emoção — e nada de exibição sentimentalista exagerada, mesmo com os Impromptus D. 935 de Schubert, que se prestariam à mais “maravilhosa expressão”.
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No primeiro acto de A importância de ser Ernesto, de Oscar Wilde, diz uma das personagens: “Não toco com precisão — isso qualquer um consegue —, mas toco com uma maravilhosa expressão. No que toca ao piano, o meu forte é o sentimento. Deixo a ciência para a vida.” Com Maria João Pires a atitude é bem diferente. Da máxima precisão é que pode emergir a emoção — e nada de exibição sentimentalista exagerada, mesmo com os Impromptus D. 935 de Schubert, que se prestariam à mais “maravilhosa expressão”.
Maria João Pires arrancou de súbito, mal se sentou, com a extraordinária música do compositor austríaco, mas num tom contido. Como se nos dissesse: em Schubert não é preciso demais, que está tudo lá.
Antes do início, o público tinha sido avisado de que “por razões dramatúrgicas” se pedia que não aplaudisse “entre compositores”. O ambiente já era de expectativa exagerada: Maria João Pires na Gulbenkian, sala completamente esgotada, nervosismos na bilheteira e à entrada — “Conseguiste bilhete?” O aviso agravou as coisas, porque então não se ia poder aplaudir o Schubert que Maria João Pires fazia a solo, antes de se juntar nas canções arménias de Komitas com a soprano Talar Dekrmanjian. Esta “razão dramatúrgica” deixou o público um pouco inquieto. Na primeira parte ainda se respeitaram as razões, mas na segunda um espectador soltou um “bravo!” que quebrou o gelo e fez surgir aplausos intercalares à pianista. O lado anti-star de Maria João Pires parece saudável quando nos obriga a escutar outras coisas na música que faz, dando a volta aos virtuosismos ou propondo programas de música de câmara, por exemplo. Mas pode tornar-se no seu contrário se, por vias travessas, sacralizar excessivamente o momento das suas apresentações públicas. Ironicamente, a “razão dramatúrgica” quebrou-se, na verdade, porque no fim do Schubert da primeira parte, e já depois da entrada da soprano, Maria João Pires teve de solicitar a esta os óculos, obrigando a uma pausa. Risos simpáticos do público ao entender que era só de uns óculos que se tratava, depois de um susto dramatúrgico imprevisto.
A soprano arménia Talar Dekrmanjian (na verdade nascida na Síria) cantou, acompanhada ao piano por Maria João Pires, canções populares arménias em arranjos do compositor Komitas Vardapet. Trata-se de uma série de canções-miniatura de curta duração, com um carácter ao mesmo tempo estranho e familiar. Familiar porque são como pequenas canções infantis de qualquer parte do mundo, algumas quase lengalengas. Estranho porque a música parece pairar em invulgares (para os ouvidos “de cá”) ornamentações em torno de poucas notas, e o canto potente e tenso de Talar Drakmanjian não deixava os ouvidos descansados. Na Canção de embalar, por exemplo, Drakmanjian cantava forte demais: mas a criança assim não acorda?
Curiosas miniaturas, cujo carácter a segunda parte do concerto viria clarificar e abrir um pouco mais, porque na primeira parte pareciam ter gerado no público — que vinha quase todo por causa de Maria João Pires — uma incompreensão ou, pelo menos, uma perplexidade.
O recomeço foi de novo com Schubert a abrir, seguido das canções arménias. Ligação inesperada, onde quase nenhum ponto de contacto se estabelece e o piano é bem outro. Distâncias que o ciclo Oriente – Ocidente (com diversos concertos com músicos arménios) pode ajudar a entender. O piano de Maria João Pires pareceu mais presente na segunda parte, e as canções foram ganhando mais sentido de conjunto, embora parecessem afastar-se para um oriente cada vez mais longínquo. Canções com perdizes e pombas que a música ilustra, esvoaçante, e alguns lamentos sentimentais postos em confronto com elementos da natureza. Particularmente belas são canções como Kele, Kele (“sobe e desce”), ou O grou, em que o voo da ave é metáfora de exílios. No concerto a emoção também voou, mas acabou por voltar, com toda a ciência. Maria João Pires também põe ciência na vida — mas a “ciência” do piano faz parte da vida!
Escusado era o encore proposto: Ave Maria de Schubert, dedicado ao pai da soprano, pareceu completamente a despropósito, e era emoção de um tipo bem diferente, que já não cabia ali.