Alerta global: os oceanos estão em risco e mais de mil milhões de pessoas podem ser afectadas

Da subida do nível da água do mar que afectará as populações costeiras à perda de biodiversidade marinha, os oceanos estão a sofrer com as alterações climáticas, alerta o relatório do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC) divulgado esta quarta-feira. É preciso tomar medidas hoje para evitar cenários irreversíveis.

Fotogaleria

Mais inundações costeiras, mais tempestades tropicais, menos biodiversidade, menos glaciares, milhões de pessoas que vivem em regiões costeiras em risco: as alterações climáticas deixam o oceano doente, afectando toda a vida na Terra – são estes os traços gerais do primeiro relatório do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC) da ONU dedicado unicamente aos oceanos e às partes geladas do planeta. Funciona como uma espécie de “diagnóstico” do impacto das alterações climáticas, com informação mais actualizada do que nunca.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Mais inundações costeiras, mais tempestades tropicais, menos biodiversidade, menos glaciares, milhões de pessoas que vivem em regiões costeiras em risco: as alterações climáticas deixam o oceano doente, afectando toda a vida na Terra – são estes os traços gerais do primeiro relatório do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC) da ONU dedicado unicamente aos oceanos e às partes geladas do planeta. Funciona como uma espécie de “diagnóstico” do impacto das alterações climáticas, com informação mais actualizada do que nunca.

O relatório, divulgado esta quarta-feira, avança que “há eventos extremos de subida do mar que são historicamente raros – acontecem uma vez por século no passado recente – que se estima que comecem a acontecer com mais regularidade – pelo menos uma vez por ano” a partir de 2050, afectando mais as regiões tropicais. E Portugal também está entre as regiões potencialmente afectadas, sobretudo quando se registam marés altas e tempestades intensas.

Os oceanos têm funcionado como uma “esponja” ao proteger a Terra dos efeitos das alterações climáticas, tendo absorvido até hoje cerca de 90% do calor em excesso – mas acabam por ser vítimas dessa absorção. Até 2100, os oceanos aquecerão até quatro vezes mais do que até hoje. E a lista de consequências é extensa: desde a subida das águas do mar à acidificação (causada pela absorção de dióxido de carbono), redução de oxigénio e aumento da temperatura das águas que põe em causa os ecossistemas. A resposta para lhes fazer frente parece simples: reduzir de uma vez por todas as emissões de dióxido de carbono e adaptar as regiões à profecia que se vai cumprindo dia após dia – ou lidar com algumas consequências irreversíveis.

O Relatório Especial sobre Oceano e Criosfera num Clima em Mudança foi apresentado na manhã desta quarta-feira, no Museu Oceanográfico do Mónaco. Está dividido em três partes: as consequências que já podem ser observadas, projecções e, por último, soluções para evitar os cenários negros que se anunciam (se nada for feito).

Foto
REUTERS/Regis Duvignau

“O mar, o Árctico, a Antárctida e a alta montanha podem parecer distantes para muitos, mas dependemos deles e somos influenciados por eles directa ou indirectamente, de muitas formas – para o clima, para alimentação e água, para energia, comércio, transporte, recreação e turismo, para saúde e bem-estar, para cultura e identidade”, afirmou o presidente do IPCC, Hoesung Lee.

O relatório mostra os benefícios de agir – e de o fazer o quanto antes – e, ao mesmo tempo, as consequências drásticas de uma acção tardia. Os investigadores deixam claro que os oceanos “dependem criticamente de uma redução de emissões ambiciosa e urgente”, coordenada com medidas de adaptação ao mal que já está feito.

Este diagnóstico feito à “saúde” dos oceanos não é animador. Ao longo deste século, presume-se que os oceanos enfrentarão “condições sem precedentes”: continuará a haver um aumento de temperatura das águas, ainda mais acidificação, perda de oxigénio, mais ondas de calor marinhas e os fenómenos atmosféricos El Niño e La Niña tornar-se-ão mais frequentes (duas vezes mais do que o normal, tanto no melhor como no pior cenário possível).

Até 2100, “prevê-se que desapareçam muitos glaciares independentemente das emissões [de dióxido de carbono] futuras” e que os danos provocados por inundações em zonas costeiras devam aumentar de magnitude (duas a três vezes mais grave do que são hoje). Há ainda risco de “impacto severo na biodiversidade” nos ecossistemas costeiros, riscos para a saúde humana e animal, e milhões de pessoas que vivem em regiões costeiras serão afectadas pela subida das águas do mar e por fenómenos meteorológicos extremos.

Aumentar

Mas é um problema de todos, como deixa claro uma das primeiras frases do relatório: “Todas as pessoas na terra dependem directa ou indirectamente dos oceanos e da criosfera”; os oceanos cobrem 71% da superfície da Terra e contêm cerca de 97% da água no planeta. Cerca de 680 milhões de pessoas vivem em zonas costeiras baixas, e estima-se que esse número possa ascender a mil milhões em 2050.

Na região do Árctico, são cerca de quatro milhões de pessoas, sendo que 10% delas são povos indígenas. Juntam-se ainda os 670 milhões que vivem em zonas montanhosas altas – todas elas ficarão em risco. “Muitas nações terão de enfrentar desafios de adaptação”, afiança-se no relatório. Além disso, “as pessoas mais expostas e mais vulneráveis são muitas vezes aquelas com menos capacidade de resposta”, alertou-se durante a conferência de imprensa.

A subida do nível médio do mar está a acontecer a um ritmo mais acelerado do que antes; só no século XX, o nível médio das águas do mar subiu cerca de 15 centímetros. “Há eventos extremos de subida do mar que são historicamente raros – acontecem uma vez por século no passado recente – que se estima que comecem a acontecer com mais regularidade – pelo menos uma vez por ano” a partir de 2050, sobretudo em regiões tropicais. E Portugal também está na mira destes eventos mais frequentes, segundo os mapas divulgados pelo IPCC.

Aumentar

Isto será uma realidade tanto no melhor cenário (em que se conseguem reduzir as emissões a partir desta década) como no pior cenário (se nenhuma medida de combate às alterações climáticas for tomada). Até 2081, a subida média do nível das águas do mar pode ser de 43 centímetros (no melhor cenário) ou de 84 centímetros (no pior).

“Desde meados do século XX, a diminuição da criosfera no Árctico e em zonas montanhosas altas levou a impactos negativos na segurança alimentar, recursos hídricos, qualidade da água, saúde, bem-estar, infra-estruturas, transportes, turismo” – afectando ainda de forma considerável as comunidades indígenas. A criosfera diz respeito a todos os componentes gelados da Terra: neve, glaciares, plataformas de gelo, icebergues, gelo dos mares, lagos e rios – ou qualquer outra superfície gelada, mesmo que sazonalmente.

Também a temperatura do permafrost (solo permanentemente gelado) atingiu “níveis recorde”. Os cientistas alertam que o permafrost árctico e boreal contém quase o dobro do carbono presente na atmosfera, daí que o seu derretimento possa ser particularmente perigoso. Os cientistas do IPCC referem que o gelo presente no Oceano Árctico sofreu uma redução “sem precedentes nos últimos 1000 anos” e o gelo é cada vez mais “jovem”: entre 1979 e 2018, a presença de gelo com mais de cinco anos baixou mais de 90%.

Aumentar

A subida das águas do mar foi acelerada por esta perda de gelo das calotas polares da Antárctida e da Gronelândia. Na Antárctida, a perda de gelo foi três vezes maior entre 2007 e 2016 do que tinha sido entre 1997 e 2006; na Gronelândia foi duas vezes maior. Esta aceleração na Antárctida pode “potencialmente levar a um aumento do nível das águas do mar de vários metros em poucos séculos”.

Mas a subida das águas do mar é só a ponta do icebergue – e, a este ritmo, qualquer dia já nem icebergue haverá. Está tudo ligado: a perda de gelo na Gronelândia e na Antárctida leva a que a subida do nível das águas do mar tenha acelerado nas últimas décadas – e, por sua vez, tudo isto ameaça as zonas costeiras não só pela subida das águas, mas também por haver um maior risco de tempestades tropicais e ondas de grande dimensão.

Acção dos governos “não é suficientemente rápida nem robusta”

O relatório do IPCC aponta o dedo aos governos, dizendo que o impacto das alterações climáticas no oceano e na criosfera tem uma escala temporal bem maior do que a duração dos governos e da sua capacidade de organizar medidas de prevenção e contenção, tornando difícil “que as sociedades se preparem adequadamente e respondam a estas mudanças a longo-prazo”. Diz ainda que a acção dos governos “não é suficientemente rápida nem robusta” para dar resposta aos inúmeros riscos apontados no relatório. O relatório do IPCC foi elaborado por 104 autores – 31 mulheres e 73 homens –, oriundos de 36 países, mas não conta com a participação de investigadores portugueses.

Foto

São então apontadas medidas para ajudar a reverter a situação: a energia renovável produzida a partir dos oceanos pode ajudar na mitigação, assim como a restauração de zonas com vegetação no litoral. Outra das medidas de baixo-custo é o desenvolvimento e aplicação de sistemas de alerta em caso de cheias, assim como equipamentos à prova de inundação em edifícios localizados em zonas litorais. São ainda sugeridos realojamentos para quem vive em zonas costeiras: “Se a comunidade afectada for pequena ou no rescaldo de um desastre, pode considerar-se reduzir o risco ao fazer ‘transferências planeadas’”, realojando-as em “localidades alternativas seguras, se existirem”.

Aumentar

Como dizia a paleoclimatóloga francesa Valérie Masson-Delmotte, uma das autoras do relatório, o “deslocamento de pessoas depende das escolhas que forem tomadas hoje”. O cientista alemão e também autor do relatório Hans-Otto Pörtner explicava durante a conferência de imprensa que nem todas as pessoas que vivem em zonas costeiras terão de mudar para zonas mais seguras, mas que este risco é bem elevado para quem vive em zonas baixas e em ilhas – “que já estão em risco hoje”. Algumas ilhas podem tornar-se inabitáveis, alerta-se.

Estas zonas costeiras também ficam mais propensas ao risco já que a vegetação que protege a costa de tempestades e erosão se tem vindo a perder nos últimos tempos: “Quase 50% dos pântanos e zonas húmidas em zonas costeiras desapareceram nos últimos 100 anos, como resultado da pressão humana, da subida da água do mar, do aquecimento e de eventos climáticos extremos”, lê-se no relatório.

Perda de biodiversidade

Quanto aos corais, o seu triste (e descolorido) destino parece anunciado: o relatório refere que os corais de águas quentes já se encontram em elevado risco devido às “temperaturas extremas e à acidificação do oceano”. Desde 1997 que as ondas de calor marinhas os fizeram perder a cor, degradando estes jardins coloridos do mar, importantes para a biodiversidade, para a protecção do litoral e também para o turismo. Os corais são de “recuperação lenta” e estima-se que fiquem ainda mais ameaçados – mesmo que se consiga reduzir as emissões e limitar a subida da temperatura global a 1,5ºC.

Por outro lado, as espécies marinhas são afectadas – assim como a biodiversidade existente em zonas montanhosas em altitude ou em glaciares ou em todo o lado onde antes havia neve e agora começa a haver terra. Tudo isto gera “distúrbios ecológicos” para estes ecossistemas, deixando animais e plantas em risco. Há espécies marinhas que, além de sofrerem os efeitos das alterações climáticas, sofrem também os efeitos da pesca abusiva.

Nas montanhas, tem-se registado uma diminuição do número de espécies alpinas e dependentes do frio, “aumentando o seu risco de extinção”. O mesmo acontece com as espécies polares – o aquecimento, perda de gelo e acidificação afecta os seus habitats. No Oceano Antárctico, haverá uma redução de krill – minúsculas criaturas semelhantes a camarões que são a base alimentar de inúmeras espécies marinhas, como as focas, os pinguins e as baleias.

De resto, os cientistas consideram importante estar preparado para o que nos espera e tomar medidas, mesmo havendo casos em que a redução de emissões de dióxido de carbono e o cumprimento do Acordo de Paris não devolva a vivacidade ambiental dos tempos de antanho. Certo é que “a capacidade de os organismos e os ecossistemas se ajustarem e adaptarem é mais elevada nos cenários em que as emissões são reduzidas”. Se se tentar mitigar estes efeitos negativos, os cientistas acreditam que é provável que o ritmo e magnitude das mudanças descritas seja menor – apesar do mal que já está feito.

A jornalista viajou a convite da Fundação Oceano Azul